Você entra em um carro de aplicativo e troca algumas palavras com o motorista: fala seu nome, desabafa sobre seu trabalho e revela seus gostos. Ou, então, você manda um áudio contando um segredo, falando mal de alguém, para uma amiga.
Agora, imagine que esta conversa está sendo transmitida ao vivo para quem quiser ver — e ouvir — por meio das redes sociais.
Motoristas de aplicativo encontraram na transmissão ao vivo das corridas, em plataformas como YouTube e TikTok, uma alternativa para tirar um dinheiro extra no fim do mês.
O problema é que, para gerar esses conteúdos, muitas vezes o passageiro nem sequer sabe que está sendo gravado — muito menos que alguém ganha dinheiro com os vídeos ao vivo da sua corrida, que podem conter informações pessoais ou comprometedoras. Lives sem autorização violam a lei.
A reportagem teve acesso a lives de motoristas de apps. As transmissões duram horas, têm milhares de visualizações — e os motoristas pedem aos espectadores dinheiro por meio de Pix para continuar gravando. Se cumprem “desafios”, são bonificados.
Tilt também conversou com passageiros que dizem que já foram gravados dentro do carro de aplicativo. Na maioria das vezes, o motorista posiciona o celular filmando apenas a via — e captando os sons de dentro do carro, mas também há relatos de passageiros que se viram na tela, dentro do veículo.
3 horas no carro
Um desses influencers, que dirige em São Paulo, publicou um vídeo no início de maio comunicando o “fim das lives” porque, segundo ele, havia sido banido da Uber e da 99app.
A partir daquele momento, ele só conseguiria usar o InDrive, segundo afirmou. Mas, no último dia 25 de julho, ele fez uma transmissão de mais de 3 horas, pegando e deixando passageiros em seus destinos, com o nome “Uber streamer”.
Ele tem quase 60 mil seguidores no YouTube. A reportagem não conseguiu confirmar se ele usava, de fato, o Uber, ou se usou a marca como sinônimo para aplicativo de transporte.
Outro motorista, que circula próximo a Niterói (RJ), falou, nos primeiros minutos de sua live no YouTube, que a noite de trabalho seria longa. “Deixa eu ligar a 99 aqui”, avisou ele, antes de ser chamado para a primeira corrida.
Ele dirige cantando, animado, interagindo com os seguidores — que também mandam Pix. Cerca de meia hora depois, pega duas passageiras jovens saindo de uma balada e puxa assunto. No chat da transmissão, os seguidores pedem:
Tá na hora de cantar a música.
No meio do papo, o motorista cantarola trechos de uma música infantil. Os “desafios” impostos pelos seguidores, se cumpridos, rendem mais Pix para ele ao longo da noite. O motorista tem 40 mil seguidores no YouTube.
Em Curitiba, outro motorista ganhava “presentes” (que podem ser revertidos em dinheiro) de seus seguidores no TikTok em tempo real, enquanto rodava com seu carro, pegando e deixando passageiros. Ele disse trabalhar com 99 e InDrive e também não descartava fazer “publis” nas lives.
Na transmissão online, é possível ouvir a voz dos passageiros e até vê-los entrando em casa, quando chegam ao destino (a câmera é posicionada em direção à rua). Os passageiros não são avisados sobre a transmissão.
O nicho rende bastante dinheiro. Ao UOL, no ano passado, um motorista de aplicativo afirmou que sua principal renda vinha dos vídeos produzidos no YouTube — ele dizia lucrar entre R$ 20 mil e R$ 30 mil por mês.
Sem autorização dos passageiros, as imagens são publicadas em seu canal na plataforma e exibem situações em que passageiros são expostos de forma vexatória ou até se envolvendo em possíveis crimes.
Ele já foi banido da Uber e 99, mas continua produzindo conteúdo.
‘Identifiquei interface do TikTok’
O estudante Gabriel Amaral, de 21 anos, conta que já teve uma corrida transmitida em junho deste ano, no Rio.
“Pedi uma corrida no Uber, para voltar da faculdade, e o trajeto foi transmitido no TikTok. A câmera estava apontada para frente, só dava para ver a pista”, diz ele.
Gabriel afirma que não foi informado sobre a gravação ou transmissão. “Só notei que tudo estava sendo transmitido quando olhei o celular [do motorista], consegui identificar a interface do TikTok e percebi que estava ao vivo”, completa.
Ele estava com a namorada no carro e, durante o trajeto, só se comunicaram por mensagens.
Me senti um pouco invadido, fiquei meio assustado. Não gostei da atitude de não me informar, me deixou encabulado.
Já a bióloga Amanda Tomaz, de 29 anos, de Uberlândia (MG), conta que teve três corridas gravadas nos últimos meses. Ao contrário de Gabriel, ela viu a própria imagem sendo transmitida ao vivo — não apenas o caminho.
Ela percebeu a ação ao olhar para o celular no painel e ver comentários e curtidas na tela. Apenas em uma das viagens foi avisada pelo motorista sobre a gravação, mas não que a viagem poderia ser transmitida.
“Você se senta para apenas chegar ao seu destino e é bombardeada com uma câmera sendo transmitida para a internet inteira. Sinto medo de pedir que desliguem, então apenas me escondo. Está se tornando comum”, desabafa. Ela não teve acesso às lives depois.
Com os episódios recorrentes, a bióloga agora toma alguns cuidados a mais quando pede um carro por aplicativo. “Não digo informações sobre mim, nem chamo as pessoas que estão comigo pelo nome. Evito ao máximo qualquer informação pessoal.”
Na primeira vez que aconteceu, ao me dar conta da live, senti medo do que eu poderia ter dito dentro do carro.
“Hoje, em toda corrida que pego, sinto mais ansiedade, então apenas evito falar e torço para chegar ao destino o mais rápido possível. Acho injusto e revoltante um serviço onde sou exposta sem consentimento e ainda preciso pagar por isso.”
Já a bolsista Gabriele Rodrigues, de 24 anos, conta que pediu uma corrida pelo aplicativo 99 em São Paulo e, quando entrou no carro, a motorista avisou que estava em uma live. “Ela perguntou se tinha algum problema, como vi que ela filmava a estrada, não os passageiros, disse que estava tudo bem”, explicou.
Sempre tive o costume de falar apenas o necessário com o motorista. Depois do acontecido, tomo cuidado redobrado. Apesar de dessa vez ter sido avisada sobre a live, acredito que pode acontecer de algum motorista gravar escondido.
O que dizem as empresas
A Uber afirmou que “os motoristas parceiros têm permissão para instalar câmeras ou utilizar dispositivos de gravação de imagens para fins de segurança”, mas há “proibição expressa de gravar viagens a fim de publicá-las nas redes sociais ou em qualquer outro fórum público”.
A empresa diz que os motoristas são instruídos sobre como tratar o tema do ponto de vista de respeito à privacidade do usuário. Segundo a Uber, publicações das viagens nas redes sociais são uma violação do código de conduta e podem levar à desativação dos envolvidos.
Já a 99app informou que “os motoristas parceiros são profissionais autônomos e têm liberdade de realizar atividades em seu veículo desde que sejam legalizadas, cumpram a legislação de trânsito e de privacidade”.
A empresa ainda afirmou “que as imagens realizadas pelos condutores durante as corridas não integram o ecossistema de segurança da 99, que inclui câmera de segurança e um recurso no app de gravar o áudio”.
A empresa reforça que o Código de Trânsito Brasileiro proíbe o manuseio de telefone a quem estiver dirigindo, caracterizando como infração gravíssima.
Já a inDrive disse que repugna tais “iniciativas que infringem a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados)”. A empresa diz ainda que passageiros podem reportar situações do tipo “para as medidas cabíveis”.
Procurados sobre as lives de motoristas e a monetização das transmissões, TikTok e YouTube não responderam.
O que diz a lei
Motoristas de aplicativo não podem fazer lives usando a imagem ou voz do passageiro sem a sua autorização. A prática pode configurar violação dos direitos de privacidade e imagem garantidos pelo Código Civil e pela Lei Geral de Proteção de Dados.
“O passageiro, caso não autorize o uso da imagem ou voz, pode solicitar a remoção do conteúdo, a suspensão da live e ainda requerer na Justiça a compensação por danos morais se comprovado o prejuízo à imagem ou privacidade”, diz Ana Beatrice Lasmar Braga, advogada especialista em LGPD.
A especialista ainda destaca que essa autorização do passageiro só é válida se for prévia e por escrito, com todos os detalhes sobre como os dados serão usados.
Caso seja avisado para o passageiro apenas de forma verbal, sem nenhum outro tipo de especificação, a autorização é considerada genérica, portanto nula.
Ana Beatrice Lasmar Braga
A orientação da advogada é para que o passageiro, caso se sinta violado, grave a situação — destacando que não autoriza o uso da imagem ou voz e a recusa do motorista, se houver.
“Em seguida, o passageiro deve entrar em contato com a plataforma”, orienta. Segundo ela, a empresa tem responsabilidade de tomar as providências porque existe um vínculo entre o motorista e a plataforma. “Se mesmo assim as necessidades do passageiro não forem atendidas, neste caso a Justiça deve ser acionada.”