Último dia para assistir no Netflix ao suspense considerado um dos melhores filmes da década

Não há nenhum filme na história do cinema cujo enredo, depois de apresentado uma primeira vez, não tenha sido trabalhado novamente e submetido a mudanças — pontuais ou drásticas —, até que fosse considerado apetente a plateias outras, impossíveis de serem alcançadas com o produto original em muitos casos. No admiravelmente ousado “Entre Facas e Segredos”, Rian Johnson faz questão de esclarece que, entre suas tantas pretensões, não consta a de reinventar a roda. Pelo contrário: vai se sentindo em seu trabalho a influência crescente de Agatha Christie (1890-1976), que, passados quase cinquenta anos de sua morte, ainda serve de base para uma infinidade de filmes do gênero, que Johnson ajuda a reflorescer aplicando camadas generosas de verniz estético a fim de preserva a inequívoca tradição de narrativas como essas, a maior responsável por manter o interesse centenário pelo que revelam. No caso de “Entre Facas e Segredos”, garante-se o frescor em se subvertendo a ordem do estabelecido e alterando-se tudo quanto há de previsível e mesmo natural na estrutura do que é contado, e, destarte, se especular sobre a autoria do crime que serve de pretexto à ação, em geral, como tem-se aqui, um homicídio — o chamado “quem matou?”, ou whodunnit, corruptela para “quem fez isso?”, em tradução literal —; o que interessa, com efeito, é a quadra da história em que se vai chegar ao assassino.

O morto em questão é Harlan Thrombey, o célebre autor de livros de suspense interpretado por Christopher Plummer (1929-2021), degolado com crueldade aos 85 anos em sua própria mansão. Para continuar essa feliz brincadeira metalinguística, Benoït Blanc, renomado detetive com direito a perfil na revista “New Yorker” e tudo, parece o único habilitado a esclarecer o delito, e, como o espectador também nota, não tarda a concluir que, por uma ou outra razão, todos os que conviviam com Thrombey tinham razões de sobra para matá-lo. As interseções com “O Assassinato no Expresso Oriente”, publicado pela Dama do Crime em 1934, são evidentes, mas o arrojo de “Entre Facas e Segredos” é louvável por trazer a lume, já no segundo ato, as circunstâncias em que Thrombey foi morto, sendo esse o anticlímax fundamental do enredo, dando ocasião ao apêndice que se fundamenta na insinuação sobre determinados personagens saberem o que houve e, portanto, tentam de todas as maneiras estorvar o trabalho de Blanc — incorporado por Daniel Craig num misto bem dosado de elegância, virilidade e um autocontrole que cheira a loucura —, com que decerto contaminou-se em tantos anos nessa carreira, ao passo que os demais permanecem à deriva, presumindo, sempre junto com o público, qual será a catástase dessa farsa trágica.

Ao dispor de arcos dramáticos que convergem quanto a se compreender a ação como uma substância maciça, indivisível, mas autônomos entre si, o filme alça voo. Todos os suspeitos, um mais cheio de idiossincrasias, de esquisitices que o outro, têm seu comportamento escrutinado por Blanc, o que reforça a clássica ideia de se estar participando de um jogo de adivinhações, onde quase nunca as coisas são como se mostram e, assim, os diversos personagens têm o condão de iludir a audiência — ainda que deixem escapar de propósito minudências que, mais cedo ou mais tarde, hão de ajudar quanto a se saber a identidade do verdadeiro culpado. Nunca prescindindo por completo dos lugares-comuns do suspense normativo, Johnson dá vida a um filme tenso e divertido, lançando mão de personagens que articula feito peças de um jogo de tabuleiro, manipulando-os mais à frente ou mais à retaguarda, nas cadências mais insólitas, no intuito de conferir à história o dinamismo que a caracteriza e a torna tão autêntica.

O diretor tem sido considerado, com toda a justiça, um dos diretores mais inventivos do cinema contemporâneo, a exemplo do que se absorve de seu trabalho em “Looper — Assassinos do Futuro” (2012) e “Star Wars: Episódio VIII — Os Últimos Jedi” (2017), que enfureceu os fãs mais ortodoxos da franquia precisamente pela natureza ventilada do enredo, antes monolítico. Em “Entre Facas e Segredos”, Johnson dispõe de oito tipos humanos para fomentar suas suposições a respeito do assassinato do protagonista. Feitas todas as considerações e depois que o roteiro do próprio Johnson deslinda os contornos psicológicos de cada uma daquelas estranhas figuras, a trama aponta para a filha mais velha, que virara uma concorrente do pai e abrira sua própria editora; o filho mais novo, presidente do grupo que publicava os livros do velho Thrombey; a nora, uma dondoca que posta fotos nas redes sociais e pensa que é influenciadora; o genro subserviente; o neto mais velho, almofadinha mulherengo e meio boçal; a neta, estudante meio fora da órbita; o neto mais novo, projeto de déspota com inclinações ultradireitistas; e a gentil ex-cuidadora.

Sem dúvida, o suspense clássico, à Agatha Christie, perdeu muito de seu glamour — e até de sua razão de ser — num mundo escravizado por modismos, uma necessidade de sintetizar tudo e o famigerado politicamente correto, verdadeira praga que se disseminou entre as sociedades civilizadas do globo a partir do início dos anos 2000. Não obstante, o diretor sugere alternativas de modo a vencer o problema e realizar um filme tão criativo quanto provocador, justamente por ser capaz de torcer expectativas e levantar discussões tentadoramente saborosas, a exemplo do se tem na personagem de Ana de Armas, que dedicara seus melhores anos a servir Thrombey. O argumento da luta de classes vem à baila de maneira reformulada, acrescido de elementos que remetem à desfaçatez de aristocratas xenófobos, que alegam que a moça seria como alguém da família, mas sequer sabem de onde exatamente ela veio, sem dúvida um lugar de onde saíra a fim de escapar da pobreza severa e tentar fazer a América, mourejar, melhorar de vida, quem sabe enriquecer, o que acaba se constituindo um respiro cômico dada a espantosa alienação dos grã-finos. Boa parte deles se faz de liberais, de progressistas, mas certamente nunca ouviu falar de Adam Smith (1723-1790), John Stuart Mill (1806-1873) ou John Maynard Keynes (1883-1946); os demais assumem sua visão de mundo autoritária, reacionária, fascista, hedionda. Em comum, os dois grupos têm o mesmo desprezo atávico pelo outro, em especial pelo outro pobre, uma elite beócia cinicamente prosélita de uma filosofia de vida baseada em meritocracia, apesar de nunca ter precisado mover uma palha para desfrutar do que a vida pode oferecer de mais sofisticado e prazeroso. Ao denunciar o caráter parasítico do clã do finado escritor, Johnson abre outras frentes de proveito num filme que deveria ser apenas diversão. E, felizmente, não é.

Embora preste uma merecida homenagem ao suspense de antanho, o filme não perde a chance de, em alguma medida, demoli-lo e erigir no lugar algo de fato novo, engajado do ponto de vista político e, o que mais importa, longe, bem longe do burocrático e do enfaroso. “Entre Facas e Segredos” é feliz ao se provar hábil a alcançar os mais diferentes públicos, graças à direção cuidadosa e às atuações perspicazes e sensíveis. Uma demonstração insofismável de que deferência não tem nada a ver com bajulação.


Filme: Entre Facas e Segredos
Direção: Rian Johnson
Ano: 2019
Gêneros: Mistério/Crime
Nota: 9/10


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