Por que a história do Brasil 'escolheu' esquecer trajetórias negras?

Os dois eram abolicionistas. Ela era baiana, residente na Corte, baronesa e dama de companhia da família imperial, chamada de “minha ministrinha” pela própria princesa Isabel e defensora da alfabetização de crianças pobres. Ele era paraense, engenheiro, professor da Escola Politécnica, do Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro e integrante do Partido Conservador.

Essas são descrições de Maria Amanda Paranaguá Dória (1849-1931) e José Agostinho dos Reis (1854-1929). Se saber seus nomes não desperta memórias do que aprendeu na escola sobre História do Brasil, o que acharia se soubesse que os dois eram negros?

As seleções do que pode ser lembrado ou esquecido são chamadas pela historiografia de políticas de memória. Tal como vemos na história oficial, elas afetam as experiências tanto de oponentes quanto de pessoas amigas e aliadas dos poderosos, sobretudo se estamos falando de pessoas negras.

Quando analisamos o modo como a sociedade entende a história, notamos que o racismo norteia os critérios das escolhas de lembranças das vidas que merecem ser preservadas.

Durante novembro, mês da Consciência Negra, há quem aproveite para deslegitimar o movimento negro, alegando defender a “consciência humana”, como se essa fosse superior à “consciência negra”. Trata-se de um jogo argumentativo que naturaliza o racismo e interdita críticas a uma ideia reducionista da humanidade.

As histórias de Amanda e Agostinho poderiam ter sido mobilizadas por quem tentou negar a existência do racismo no Brasil por eles serem pessoas vinculadas a espaços conservadores e notáveis em sua época. Mas não foram.

A “mãe dos analfabetos”

Chamada de “morena” ou “mulatinha” em diversos momentos da vida, Amanda era filha do “mulato” João Paranaguá e casada com o advogado e político “mulato de cabelos crespos” Franklin Dória. Os dois foram chamados de “negações absolutas de todas as boas qualidades da raça cruzada”, por José do Patrocínio.

No Rio, Amandinha frequentava os palácios imperiais desde a infância. Em 1862, numa brincadeira, a princesa Isabel perfurou seu olho, substituído por um de vidro caríssimo, custeado pelo imperador. O acidente estreitou ainda mais sua relação com a família imperial. Adulta, ela, além de abolicionista, ganhou a alcunha de “mãe dos analfabetos” por seu apoio a projetos de alfabetização de crianças pobres.

Requisitada para auxiliar a princesa em sua regência em 1887, Amanda recebeu o título de baronesa de Loreto em 1888. Nos anos 1920, a ex-dama de companhia de Isabel, recebia em sua casa curiosos sobre os tempos do imperador.

O liberto que virou engenheiro e peitou a Constituição

Aliado de João Alfredo Correia de Oliveira, o chefe do gabinete ministerial que negociou o fim da escravidão no Parlamento, Agostinho nasceu escravizado em Belém, mas teve sua alforria comprada por sua mãe, a quitandeira Leonarda Maria de Jesus Portugal. Mudou-se para a Corte, onde se formou engenheiro e tornou-se professor da Escola Politécnica e do Liceu de Artes e Ofícios, onde ministrou até mesmo aulas sobre O Capital para operários no curso de economia.

Escravizado liberto, José Agostinho dos Reis (1854-1929) foi um engenheiro, professor e político com passagem pelo Partido Conservador; na edição jornal ‘A Noite’, ele aparece à esquerda

Imagem: Reprodução

Compartilhou com André Rebouças não só os espaços acadêmicos, mas também a luta abolicionista. No dia da fundação da Associação Abolicionista da Politécnica, ele chocou os colegas ao revelar seu segredo de infância. “Vós não sabeis que o vosso colega e o vosso lente nasceu escravo”, afirmou, segundo registro do jornal cearense “Libertador” de 13 de outubro de 1883.

Mais adiante esteve à frente do Clube de Engenharia do Rio de Janeiro, incluindo no momento da visita em 1925 do físico alemão Albert Einstein (1879-1955). Era um sujeito muito católico. Apesar de ser um liberto, contrariando a Constituição de 1824, ele se candidatou várias vezes pelo Partido Conservador e depois se vinculou ao Partido Democrático Republicano.

Racismo à brasileira

Candidatos a ter a vida eternizada por circularem em rodas conservadoras, Amanda e Agostinho foram ilustres ausências nas narrativas históricas brasileiras. Exceções aconteceram com as trajetórias de André Rebouças, Machado de Assis e José do Patrocínio, mas elas foram usadas para simbolizar a inexistência do racismo. E por quê?

Uma possível explicação diz respeito a quem decidiu e como a memória nacional foi acionada para definir o que deveria ser a sociedade brasileira perante o mundo. Sujeitos majoritariamente masculinos e brancos, formaram academias como o IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), em 1838, tido como o “templo da História”.

Entre o século 19 e boa parte do 20, critérios raciais deram o tom da escrita sobre o passado. Isso colocou na irrelevância o povo brasileiro colocando na irrelevância o povo brasileiro, por não atender às expectativas de europeização, expressas em discursos públicos e políticas de Estado.

Exemplo disso é o incentivo que o Brasil deu à imigração europeia para promover o embranquecimento da população até a década de 1930. Os projetos de branqueamento do povo brasileiro não se resumiram a isso. Virou costume esquecer a presença negra, avançando sobre a vida de quem era prejudicado por práticas racistas de apagamento histórico.

Além disso, personalidades negras exemplares, cuja imagem poderia valorizar a imagem africanizada do Brasil, não cabiam no lugar de subalternidade definido para abrigar os não-brancos. Por isso, esses expoentes eram tratados como casos isolados, que destoavam da massa indesejada de pessoas negras. Este era exatamente os casos de Machado de Assis, André Rebouças e José do Patrocínio.

Todavia, esse apagamento tem mudado.

A Virada histórica: gente negra não é objeto

Na década de 1980, os movimentos negros se uniram contra o “mito da democracia racial” e em prol da “consciência negra”, algo que impactou os espaços acadêmicos. Uma virada historiográfica atenta à capacidade dos escravizados de subverter a escravidão abria caminhos. A chamada “agência escrava”, capacidade de o escravizado agir como gente, que se contrapunha à ideia do “escravo coisa”, do “sujeito passivo”.

Quando esse rearranjo se somou ao aumento da presença de historiadores negros na universidade nos anos 2000, assistimos ao aprofundamento dessa renovação. Foi quando mais pessoas negras do presente passaram a disputar a produção de narrativas históricas sobre pessoas negras do passado a partir de perguntas muitas vezes inéditas.

Abordagens inovadoras têm sido criadas considerando a dimensão subjetiva de quem é afetado pelo racismo. Aí está parte importante da explicação para o aumento de pesquisas sobre trajetórias individuais e coletivas de sujeitos negros para além da escravidão.

A demonstração de múltiplas possibilidades da existência negra, mesmo numa sociedade fundada na escravidão e na hierarquização racial de seu povo, confere humanidade a essas pessoas até então subalternizadas.

Se as histórias de Amanda Paranaguá e Agostinho dos Reis poderia qualificá-los a ocupar espaços ilustres da pátria, outras figuras igualmente emblemáticas em suas épocas foram encobertas por suas existências desafiarem ainda mais políticas de memória excludentes. Este é o caso da Rainha Africana e sua corte de travestis negras na capital do Império.

Quando as lutas abolicionistas estavam em alta nos anos 1880, a Rainha Africana (Marcos Juvenal da Costa), a Crioula de Gosto (Antonio José Ribeiro) e a Africana Bicuda (José Lopes de Castro) e outras travestis negras ocupavam as ruas do Rio.

Presas muitas vezes por usarem trajes femininos, elas integravam uma rede de solidariedade para sobreviver às noites cariocas. A recorrência de suas prisões revela a persistência em desafiar as forças do Estado patriarcal, regulador das relações raciais e de gênero. Classificadas —no masculino mesmo— como “vagabundos”, “desordeiros” e “ébrios”, essas travestis são exemplos de que há muito mais a ser descoberto sobre a complexidade da população negra para além da escravidão e da preconcebida heteronormatividade.

Até poucos anos atrás, contar a história do Brasil era o mesmo que elaborar narrativas em que gente negra não passava de detalhe numa paisagem branca. Não é mais!

*Itan Cruz e Ana Flávia Magalhães são integrantes da Rede de HistoriadorXs NegrXs. Este artigo compõe a Ocupação da Rede de HistoriadorXs NegrXs em veículos de comunicação de todo o Brasil neste 20 de novembro de 2021.


PUBLICIDADE
Imagem Clicável