Os aplicativos de rastreamento de crianças estão crescendo. Eles ajudam os pais a manter o controle, mas será que eles podem prejudicar as famílias que buscam a tranquilidade?
Elaine Spector estava ansiosa por saber se o seu filho havia retornado com segurança ao apartamento dele no Texas, nos Estados Unidos, depois de uma recente visita à família. Mas, em vez de esperar que ele ligasse ou enviasse uma mensagem de texto, a mãe – que mora em Baltimore, também nos EUA – estava cuidando das suas tarefas diárias enquanto aguardava um som tranquilizador – um plim – no seu telefone.
Isso porque, como 32 milhões de outras pessoas em todo o mundo, Spector e toda a sua família têm o aplicativo Life360 instalado nos seus telefones.
O aplicativo controla permanentemente o paradeiro dos seus três filhos, informando a ela quando eles estão em trânsito, quando estão em segurança em casa, se estão em algum lugar onde não deveriam estar e enviando uma série de outras informações.
“Se eles chegam à escola, o celular faz plim. Se eles chegam em casa, plim”, conta Spector, que é advogada de patentes. “É apenas uma forma de a família saber onde todos estão.”
A família já vem usando o aplicativo há vários anos e Spector afirma que, embora seus filhos mais jovens costumem às vezes desligar sua localização, o filho mais velho nunca teve problemas em usar o aplicativo. Mesmo agora que ele completou 18 anos e mora no outro lado do país, ela admite que a possibilidade de ele remover o aplicativo e retirar os reconfortantes plins a deixa “estressada”.
“Não quero ser a mãe que chega de helicóptero para salvá-los, mas nós já temos isso há algum tempo e uma parte de mim hesita em desligar”, ela conta. “Eu gosto de ser sutil e pensar que ‘ele está seguro e não preciso incomodá-lo’.”
A popularidade dos aplicativos de rastreamento familiar explodiu na última década. É claro que o instinto natural dos pais de proteger seus filhos é uma razão do crescimento, mas esses aplicativos continuam crescendo à medida que os pais opinam que o mundo – tanto offline quanto online – apresenta cada vez mais riscos.
Mas os especialistas afirmam que os pais que quiserem usar esses aplicativos devem pensar muito sobre a forma de fazê-lo e como eles irão conversar com seus filhos sobre eles. Os aplicativos estão coletando dados de forma cada vez mais sofisticada, o que levanta questões sobre a segurança pessoal.
E os filhos que foram criados sendo monitorados pelo aplicativo estão agora atingindo a idade adulta, deixando os pais com o dilema: quando desligar?
Delimitação geográfica, monitoramento da velocidade e mais
Embora Life360 domine o mercado de aplicativos de rastreamento familiar – atualmente, ele é o sexto aplicativo de rede social mais instalado na loja de aplicativos iOS, tanto no Reino Unido quanto nos Estados Unidos -, existe uma ampla variedade de software disponível, todos oferecendo aos pais vários graus de monitoramento.
Ghislaine Bombusa, diretora da área digital da organização Internet Matters, com sede no Reino Unido, que assessora os pais sobre segurança na internet, afirma que existem essencialmente dois tipos de opções de rastreamento. Sua escolha “depende do tipo de pai que você é, em termos do rigor com que você quer monitorar seu filho”, segundo ela.
Os aplicativos mais simples são os de compartilhamento da localização, que vêm instalados em telefones como Find My Friends em dispositivos iOS, ou Google Family, para Android. Existem também aplicativos de terceiros que permitem que os usuários coletem uma série de dados quase ilimitada dos telefones conectados.
Basicamente, esses aplicativos incluem características como delimitação geográfica, enviando um alerta quando um telefone entra ou sai de uma área determinada. Para os pais com motoristas adolescentes, existe também monitoramento da velocidade e detecção de acidentes – algo que Spector afirma ter resultado muito útil.
Em um ponto mais extremo do mercado, aplicativos como FindMyKids permitem ao pai ativar remotamente o microfone do telefone do seu filho e até gravar áudio, enquanto TeenSafe ativa um “modo discreto” que, segundo a companhia, significa que o filho “nunca descobrirá que seus pais o estão rastreando”.
Além do rastreamento físico, os aplicativos podem também gerenciar a vida digital da criança, “seja sobre os seus gastos se você der uma mesada online, ou como e quando eles usam os consoles de jogos”, segundo Bombusa. Aplicativos como OurPact permitem que os pais observem capturas de tela das interações online dos seus filhos, enquanto Bark rastreia efetivamente suas mensagens para alertar os pais sobre “interações preocupantes”.
Bombusa não acredita que todos os pais estejam utilizando esses aplicativos, mas ela afirma que a sua proliferação e a quantidade de investimento nesse tipo de software certamente indicam alta demanda. Uma pesquisa de 2019 entre pais e responsáveis no Reino Unido concluiu que 40% deles estavam usando algum tipo de rastreamento por GPS diariamente.
E esses aplicativos formam um grande negócio. Somente Life360 foi avaliado em mais de US$ 1 bilhão (R$ 5,5 bilhões) e opera em mais de 140 países. Embora muitos aplicativos ofereçam versões gratuitas, a maioria também tem a opção de upgrade para contas pagas com funções adicionais ou conexão a mais aparelhos.
O aplicativo Circle, que monitora o uso da internet, por exemplo, começa com US$ 9,99 (R$ 54,95) por mês, enquanto TeenSafe oferece um plano para cinco aparelhos que custa atualmente US$ 99,99 (R$ 549,95) por mês.
Dados x confiança
Os aplicativos de rastreamento da localização são anunciados como ferramentas essenciais para os pais em um mundo cheio de perigos.
Eles dependem de pais que acreditem que, enquanto eles souberem onde seus filhos estão, eles estarão mais seguros – ou que os filhos evitarão comportamento de risco se souberem que estão sendo observados. E certamente há casos em que os pais usaram aplicativos de rastreamento para encontrar adolescentes que haviam sofrido acidentes ou até que haviam sido sequestrados.
Mas Sonia Livingstone, professora do departamento de comunicação da London School of Economics and Political Science, acredita que, de fato, “não há evidências de que nenhum desses aplicativos aumente a segurança das crianças. Procuro todas as evidências e nunca vi nenhuma”, afirma ela.
Como especialista em segurança e direitos digitais das crianças, Livingstone escreveu diversos livros sobre a criação de filhos na era digital. Ela acredita que a extensa adoção de aplicativos de rastreamento é uma reação compreensível às manchetes constantes sobre “os terríveis perigos para os nossos filhos”. Mas ela argumenta que, a longo prazo, os aplicativos de rastreamento podem ter “consequências indesejadas, e também prejudiciais”, especialmente para o relacionamento entre pais e filhos.
Os fabricantes e anunciantes de aplicativos podem fazer com que os pais acreditem que instalar esses aplicativos é um ato de amor pelos filhos, mas, para Livingstone, “o mais importante para o desenvolvimento é que a criança aprenda a confiar nos pais – e os pais, na criança”.
Depender de um aplicativo para descobrir onde um filho está ou o que ele está vendo online, ainda mais sem o seu conhecimento, pode prejudicar seriamente essa confiança, segundo ela, e poderá levar os filhos a fazer escolhas mais arriscadas ou aprender a escapar do rastreamento. Livingstone ressalta que, além do direito a estar em segurança, os filhos têm também direito à privacidade, principalmente à medida que ficam mais velhos.
Você certamente não precisa procurar muito para encontrar adolescentes – e até indivíduos com mais idade – que sentem que seus pais estão invadindo esses direitos ou não estão dispostos a abandonar suas rédeas digitais. A plataforma Reddit, em especial, está repleta de histórias de jovens que se sentem constrangidos pelo monitoramento remoto ansioso dos seus pais.
Na comunidade do Reddit chamada Insane Parents (“Pais Insanos”, em tradução livre), uma postagem recente diz: “Minha mãe viu que minha localização estava desligada no Life360, ameaçou desligar meu telefone e ainda disse que não posso mais dirigir o carro… Ah, eu já mencionei que tenho 20 anos de idade???”
Outra postagem na comunidade Life360, onde os usuários trocam informações sobre como fugir do monitoramento, era de um jovem que dizia ter 19 anos e tinha o celular pago pela mãe, o que o forçava a baixar o aplicativo.
“Fico em casa literalmente todo o tempo em que não estou na escola, sendo que ela me leva e vai me buscar. Por que ela acha que precisa rastrear minha localização se sempre estou em um desses dois lugares?”
Livingstone afirma que existe, de fato, um risco real de que o monitoramento dos pais “deixe de ser intrusivo para ser abusivo”. Ela argumenta que é “fundamental para nossa autonomia e nossa integridade pessoal que ninguém observe todos os nossos pensamentos pessoais”.
“É isso que significa privacidade.”
Outra preocupação importante para Livingstone é a quantidade “assustadora” de dados que as companhias de tecnologia coletam por trás desses aplicativos.
Life360 afirma que oferece aos usuários “total controle e transparência” sobre suas informações e que as configurações podem ser alteradas de acordo com preferências individuais, mas outros aplicativos são muito abertos ao compartilhamento de dados com empresas, como companhias de seguro. Livingstone acredita que existe uma preocupante falta de entendimento, mesmo entre os especialistas, sobre a forma atual de uso dos dados ou como eles poderão ser utilizados no futuro.
Elaine Spector afirma que não está “nada preocupada” com a coleta de dados e acredita que os benefícios são muito superiores a eventuais preocupações a respeito.
Mas Livingstone afirma que os pais precisam pensar muito, não apenas sobre os riscos imediatos, mas em como a tecnologia poderá se desenvolver na próxima década. Os dados coletados hoje sobre uma criança com sete anos de idade poderão teoricamente ser alimentados para algum “algoritmo brilhante” no futuro, que os discrimine com base no histórico das suas movimentações.
“Ninguém está olhando para o futuro dessa forma e acho que os pais deveriam realmente pensar com muito cuidado antes de conceder esse tipo de acesso a alguém”, afirma Livingstone.
Limites e equilíbrio
Se um pai realmente sentir que o aplicativo é a solução adequada para ele, existem formas de minimizar os riscos salientados por Livingstone.
Ghislaine Bombusa afirma que é essencial que o uso de um aplicativo seja feito em conjunto por pais e filhos, depois de uma conversa aberta, e que o filho saiba que o aplicativo não substitui sua relação adequada de confiança. Tenha a certeza de que todos sabem o que a tecnologia irá fazer, por que você quer usá-la, quais os limites sendo estabelecidos e, principalmente, qual o sentimento da criança sobre isso, acrescenta ela. Também é fundamental adaptar o uso dos aplicativos ao longo do tempo, à medida que a criança vai crescendo e precisa de mais independência.
“Acho que o importante é o comportamento exibido pelos seus filhos. Se eles usarem [o aplicativo] assim que receberem o telefone e seguirem as regras… pode-se conversar sobre o abandono de alguns desses dispositivos de rastreamento. Ou talvez se possa dizer ‘Está bem, só vou rastrear em caso de preocupação’ e não por todo o tempo”, segundo Bombusa.
Mas Livingstone se preocupa com as muitas consequências desconhecidas dos aplicativos de rastreamento para as crianças e seu desenvolvimento para recomendar seu uso.
“Nós simplesmente não sabemos o que acontecerá com essa geração de crianças que está crescendo em um mundo onde elas são sempre observadas, sempre rastreadas e nunca ficam perdidas, nem precisaram se recuperar sozinhas”, afirma ela. “Eu de fato respeito a ansiedade dos pais, que os leva a acreditar que esta poderá ser a solução e realmente os convido a encontrar uma solução diferente.”
Elaine Spector se orgulha em dizer que sua família tem o tipo de “diálogo aberto” recomendado por Bombusa, de forma que ela nunca precisou “policiar” as atividades dos seus filhos. Mas ela admite que seria muito difícil abandonar os plins habituais do aplicativo Life360 e a paz de espírito que ela sente por poder ver onde estão seus filhos.
“Acho que viciante é uma definição adequada, pois sinto que fico estressada só de pensar em não ter isso”, ela conta.
Por enquanto, seu filho mais velho ainda está satisfeito por ter o aplicativo, “porque ele sabe que não o estou perseguindo nem verificando onde ele está”, afirma ela. Mas ela sabe que está chegando o momento em que ela perderá os seus plins: “Ele me contaria se não quisesse e eu respeitaria isso. Seria difícil, mas não seria a primeira coisa difícil que teríamos que fazer enquanto pais.”
Leia a íntegra desta reportagem (em inglês) no site BBC Worklife.
Esta reportagem é parte da série Family Tree, que examina problemas e oportunidades enfrentados pelas famílias atuais – e como eles definirão o mundo de amanhã. Outras reportagens (em inglês) estão disponíveis no site BBC Future.
Já assistiu aos nossos novos vídeos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!