Como legislador no estado norte-americano da Virgínia, Ibraheem Samirah estudou questões de privacidade na internet e debateu a regulamentação da coleta de dados privados pelas empresas de tecnologia. Ainda assim, ele ficou surpreso ao saber todos os detalhes que a Amazon coletou sobre ele.
A empresa possuía mais de 1.000 contatos de seu telefone. Também tinha registros de exatamente qual parte do Alcorão ele ouviu em 17 de dezembro do ano passado.
A Amazon sabia ainda todas as pesquisas que ele fez na plataforma da empresa, incluindo uma busca por livros sobre “organização comunitária progressiva” e outras mais delicadas, relacionadas à saúde, e que ele acreditava serem privadas.
“Eles estão vendendo produtos ou espionando pessoas comuns?” questionou Samirah, um membro do partido democrata na casa legislativa da Virgínia.
Samirah esteve entre os poucos legisladores da Virgínia que se opuseram a um projeto de lei estadual sobre privacidade, elaborado pela Amazon e favorável à indústria. O texto foi aprovado no início deste ano. À pedido da Reuters, Samirah solicitou à Amazon a divulgação dos dados que coletou sobre ele.
As informações que a Amazon coleta
A companhia reúne uma vasta gama de informações sobre seus clientes nos EUA e começou a disponibilizar esses dados para todos, mediante solicitação, no início do ano passado.
O movimento ocorreu depois que a Amazon tentou, e não conseguiu, derrotar uma medida de 2018, na Califórnia, que exigia tais divulgações. (Os clientes da Amazon nos EUA podem obter seus dados preenchendo um formulário na Amazon.com.)
Sete repórteres da Reuters também obtiveram seus respectivos arquivos mantidos pela Amazon. Os dados revelam a capacidade da empresa de reunir retratos incrivelmente íntimos dos consumidores.
A empresa coleta dados por meio de sua assistente de voz Alexa, de seu marketplace, do Kindle, de audiolivros pelo Audible, de suas plataformas de vídeo e música, de câmeras de segurança doméstica e de monitores de atividade física.
Dispositivos habilitados para a Alexa fazem gravações dentro das casas das pessoas, e câmeras de segurança Ring capturam todos os visitantes.
Assistentes virtuais Echo da Amazon, que contam com a Alexa — Foto: Divulgação/Amazon
Essas informações podem revelar a altura, o peso e as condições de saúde de uma pessoa; sua etnia (por meio de pistas contidas em dados de voz) e inclinações políticas; seus hábitos de leitura e compra; seu paradeiro em um determinado dia e, às vezes, quem ela encontrou.
O dossiê de um repórter mostra que a Amazon coletou, por meio da Alexa, mais de 90.000 gravações de familiares entre dezembro de 2017 e junho de 2021 – uma média de cerca de 70 por dia. As gravações incluem detalhes como os nomes de seus filhos pequenos e suas músicas favoritas.
Interações com a Alexa são gravadas
A companhia gravou as crianças perguntando como convencer os pais a deixá-las “brincar”, e recebendo instruções detalhadas da Alexa sobre como persuadi-los a comprar videogames.
Estejam totalmente preparadas, aconselhou a Alexa às crianças, para refutarem argumentos comuns dos pais, como “é muito violento”, “muito caro” e “você não está indo bem na escola”. A informação veio de um site externo utilizado pela Alexa, chamado “wikiHow”, que fornece instruções sobre como fazer algo através de mais de 180.000 artigos, de acordo com o site da Amazon.
A Amazon disse que não é dona do wikiHow, mas que a Alexa, às vezes, responde a solicitações usando informações retiradas de sites.
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Algumas gravações envolveram conversas entre membros da família, que usaram a Alexa para se comunicarem entre diferentes partes da casa.
Várias gravações capturaram crianças se desculpando com seus pais após serem advertidas. Outras registraram os pequenos, de 7, 9 e 12 anos, questionando à Alexa sobre termos como “pansexual”.
Em certa gravação, uma criança pergunta: “Alexa, o que é uma vagina?” Em outra: “Alexa, o que significa escravidão?”
O repórter não percebeu que a Amazon estava armazenando as gravações antes da divulgação dos dados.
A Amazon diz que os produtos Alexa são projetados para gravar o mínimo possível: começa após a palavra de gatilho, “Alexa”, e encerra quando o comando do usuário chega ao fim. Os registros da família do repórter, no entanto, às vezes capturavam conversas mais longas.
Em um comunicado, a Amazon disse que tem cientistas e engenheiros trabalhando para melhorar a tecnologia e evitar gatilhos falsos que levam à gravação. A empresa afirmou que alerta os clientes sobre o armazenamento das gravações quando a conta na Alexa é configurada.
Além disso, a companhia disse que a coleta dados pessoais serve para melhorar produtos e serviços e personalizá-los para os indivíduos.
Questionada sobre os registros de Samirah ouvindo o Alcorão, a Amazon disse que tais informações permitem aos clientes continuar de onde pararam anteriormente.
A única maneira de os consumidores excluírem muitos desses dados pessoais é encerrando suas contas, disse a Amazon. Ainda assim, a empresa afirmou que retém algumas informações, como o histórico de compras, mesmo depois do encerramento da conta devido a obrigações legais.
A Amazon também disse que permite aos clientes o ajuste das configurações em assistentes de voz e outros serviços, para limitar a quantidade de dados coletados.
Astro, o robô da Amazon que se parece com um pet — Foto: Divulgação
Os usuários da Alexa, por exemplo, podem impedir que a empresa salve o conteúdo coletado ou optar por excluí-lo automaticamente de forma periódica. É possível ainda, segundo a companhia, desconectar seus contatos ou calendários dos dispositivos, caso o cliente não queira usar as funções de ligação ou de agenda da Alexa.
Um cliente pode optar por não ter suas gravações da Alexa analisadas, mas deve navegar por uma série de menus e dois avisos que dizem: “Se você desligar isso, o reconhecimento de voz e os novos recursos podem não funcionar bem.”
Questionada sobre os avisos, a Amazon disse que os consumidores que limitam a coleta de dados podem não ser capazes de personalizar alguns recursos, como a reprodução de música.
Preocupações com vigilância e pedidos do governo
O parlamentar Ibraheem Samirah, de 30 anos, ganhou uma Alexa no final do ano passado. Ele disse que usou o produto por apenas três dias antes de devolvê-lo, após perceber a coleta de gravações.
O aparelho já havia reunido todos os seus contatos telefônicos, como parte de um recurso de ligações. Segundo a Amazon, os usuários da Alexa devem dar permissão de acesso aos contatos telefônicos. Para excluir os registros de sua conta Amazon, os clientes devem desabilitar esse acesso, não apenas excluir o aplicativo da Alexa.
Samirah afirmou que também ficou nervoso com o fato de a Amazon ter registros detalhados de suas sessões de leitura em audiolivros e no Kindle.
Encontrar informações sobre como ouviu o Alcorão, disse ele, fez-o pensar sobre a história da polícia e das agências de inteligência dos EUA, que vigiam muçulmanos por suspeitas de ligações terroristas após os ataques em 11 de setembro de 2001.
“Por que eles precisam saber disso?”, questionou. O mandato de Samirah termina em janeiro, já que ele não foi reeleito ao cargo.
Às vezes, agências de segurança dos Estados Unidos procuram dados sobre clientes de empresas de tecnologia. A Amazon diz que cumpre os mandados de busca e outras ordens judiciais relacionadas, mas se opõe a “solicitações excessivas ou inadequadas”.
Dados da empresa referentes aos três anos encerrados em junho de 2020, os mais recentes disponíveis, mostram que a empresa cumpriu pelo menos parcialmente com 75% das intimações, mandados de busca e outras ordens judiciais que miraram dados de clientes nos EUA. Foram atendidas plenamente 38% dessas solicitações.
No ano passado, a empresa parou de divulgar a frequência com que atende a essas solicitações. Questionada sobre o motivo, a Amazon disse que expandiu o escopo do relatório para torná-lo global e tornou mais simples as informações de cada país.
A Amazon afirmou que é obrigada a cumprir decisões válidas e vinculativas, mas que seu objetivo é liberar “o mínimo” exigido por lei.
A política de privacidade da Amazon, documento que contém mais de 3.500 palavras, além de links para mais de 20 outras páginas, dá a empresa ampla liberdade para coletar dados.
A Amazon disse que a política descreve a coleta, uso e compartilhamento de dados “de uma forma que seja fácil para os consumidores entenderem”.
Essas informações coletadas podem ser bastante pessoais. O Kindle, por exemplo, rastreia com precisão os hábitos de leitura de um usuário, mostrou o arquivo de dados da Amazon de outro repórter.
Jeff Bezos, CEO da Amazon, mostra o tablet Kindle Fire, concorrente do iPad — Foto: Shannon Stapleton/Reuters
A divulgação incluiu registros de mais de 3.700 sessões de leitura desde 2017, incluindo data e hora – até o milissegundo – do conteúdo consumido. A Amazon também rastreia palavras destacadas ou pesquisadas, páginas viradas e promoções vistas.
O registro mostrou, por exemplo, que um membro da família do repórter leu “The Mitchell Sisters: A Complete Romance Series” em 8 de agosto de 2020, a partir das 16h52 até 19h36, folheando 428 páginas.
Em julho, fundador da Amazon foi ao espaço em foguete da sua empresa Blue Origin. Relembre:
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