Os avanços da inteligência artificial no setor editorial geram medo e criatividade


A chegada da Amazon reconfigurou o panorama do varejo de livros. O surgimento dos livros eletrônicos pôs em risco a palavra impressa. Enquanto isso, o grande crescimento da autopublicação ofereceu aos escritores um caminho para o sucesso que deixou de lado as editoras convencionais. Em todas essas situações, a indústria editorial conseguiu se adaptar.


Agora, o setor está enfrentando uma nova reviravolta, que tem o potencial de ser muito mais abrangente e transformadora: a ascensão da inteligência artificial.



Algumas empresas do universo editorial já estão explorando o uso de programas de inteligência artificial (IA) em diversas frentes, como marketing, publicidade, produção de audiolivros e até mesmo redação, buscando entender tanto a possibilidade de auxiliar o trabalho humano quanto o receio de que as máquinas possam assumir completamente algumas dessas funções.


Para alguns profissionais do setor, a ameaça já se tornou realidade. Escritores estão se unindo a outros artistas, programadores e criadores de conteúdo para processar empresas de IA, alegando que seu trabalho está sendo utilizado para treinar sistemas de IA.


Os autores estão preocupados com o uso não autorizado de sua obra – especialmente porque essa tecnologia pode alimentar softwares de comunicação automatizada como o ChatGPT, capaz de gerar textos incrivelmente envolventes, imitar autores renomados e até mesmo produzir romances completos depois de seguir instruções de um humano habilidoso.


“É urgente que os escritores se envolvam com o tema da inteligência artificial. Atualmente, os escritores literários correm menos riscos do que alguns outros, mas não há garantias de que isso não vá mudar com o advento da próxima geração de modelos”, declarou o romancista Hari Kunzru. Recentemente, ele assinou um contrato com a Knopf para seus dois próximos livros, especificando que estes não poderiam ser empregados no treinamento de IA.


Nos últimos meses, a tecnologia avançou rapidamente, infiltrando-se em praticamente todos os lugares – em salas de aula, hospitais, tribunais e até em Hollywood, onde os roteiristas entraram em greve exigindo não apenas melhores salários, mas também medidas de proteção diante do aumento da IA.


No campo editorial, a tecnologia também tem o potencial de reconfigurar praticamente todos os aspectos do processo de produção de um livro, inclusive o próprio ato de escrever. “O mercado inteiro vai ser afetado. Eu não me surpreenderia se, em breve, a inteligência artificial se tornasse altamente competente em certos gêneros de ficção”, afirmou Mary Rasenberger, CEO da editora Authors Guild.


Muitas editoras estão adotando medidas para resguardar suas criações. Recentemente, a Authors Guild promoveu uma petição, assinada por milhares de escritores, exigindo que as empresas obtenham sua autorização antes de usar suas obras para treinar programas de IA.



As agências que representam os ilustradores também revisaram os contratos para evitar que as criações deles sejam utilizadas para alimentar programas de IA. A Penguin Random House, a maior editora de livros do país, ressaltou que vê como uma violação de direitos autorais a “utilização não autorizada” de conteúdo para treinar modelos de IA.


Paralelamente, houve um grande aumento no número de startups editoriais que empregam a inteligência artificial para criar, compilar, editar e promover livros, de acordo com Thad McIlroy, analista do setor que estudou o impacto da IA e monitorou cerca de 50 dessas empresas.


Entre essas startups estão a Stockimg, que tem a capacidade de produzir capas de livros; a Storywizard, programa que cria histórias infantis; a Subtxt, que atua como um assistente de redação, auxiliando autores a expandir conceitos ou desenvolver personagens; e a Laika, programa de IA que alega emular a prosa de escritores renomados como Jane Austen e Edgar Allan Poe.


Editoras renomadas também estão explorando a tecnologia, embora de forma mais discreta, segundo McIlroy: “Está tudo sendo feito com bastante discrição. As grandes editoras estão muito preocupadas do ponto de vista jurídico, e com sua relação com os autores, caso admitam que estão usando essas ferramentas.”



Alguns escritores estão empregando a inteligência artificial como uma espécie de assistente de redação e edição, capaz de ajudá-los no processo de geração de ideias, organização de material, desenvolvimento de personagens ou elaboração de esboços.


“Todos os autores que conheço estão investigando a utilidade da inteligência artificial em seu trabalho”, disse Josh Bernoff, autor da área de negócios que emprega o ChatGPT para sintetizar informações e sugerir maneiras de reformular alguns trechos de seus textos. Ele acrescentou, no entanto, que nunca o usaria para gerar texto, por um motivo simples: “O resultado é uma prosa monótona.”


Parte da resistência das editoras aos conteúdos gerados por IA decorre de suas implicações legais. O texto escrito por máquinas não pode ser protegido por direitos autorais. Se passar por modificações feitas por seres humanos, pode se tornar elegível para essa regulamentação, mas essa avaliação será feita caso a caso, de acordo com o Escritório de Direitos Autorais dos EUA.


Executivos das editoras admitem que isso reduz consideravelmente o apelo do conteúdo produzido por IA para esse nicho de empresas, já que elas costumam evitar adquirir obras que não possam licenciar e comercializar com exclusividade.



Mas as editoras nunca tiveram problemas para encontrar autores, inclusive aqueles dispostos a ganhar pouco ou não ganhar nada. A tarefa mais premente e difícil do setor é anunciar aos leitores quais livros estão sendo lançados, desafio que se intensificou nos últimos anos.


A cobertura de livros nos veículos de comunicação jornalística diminuiu, enquanto um maior número de leitores compra livros on-line, ambiente no qual é menos provável que sejam encontrados títulos sobre os quais não se tenha ouvido falar. Muitos profissionais do setor disseram temer que a enxurrada de conteúdo produzido por inteligência artificial possa complicar ainda mais a tarefa de descobrir livros escritos de maneira convencional.


“O desafio para as editoras não é produzir mais conteúdo, mas sim solucionar a questão da descoberta. É aí que está a mina de ouro”, afirmou Madeline McIntosh, ex-CEO da Penguin Random House U.S.



Programas alimentados por IA já estão sendo empregados para tentar resolver esse problema, auxiliando os leitores a descobrir uma variedade maior de livros. A Open Road Integrated Media, empresa que fornece serviços de marketing para editoras, anunciou recentemente sua intenção de usar a tecnologia para aprimorar continuamente os metadados associados a certos títulos, para que eles apareçam com mais destaque nos mecanismos de busca e nos sites de varejo.


A inteligência artificial também está revolucionando a produção de audiolivros, formato lucrativo e em rápido crescimento para as editoras.


Tanto a Apple quanto o Google oferecem programas que transformam livros eletrônicos em audiolivros gratuitamente, por meio da tecnologia de texto para voz. Empresas mais novas, como a DeepZen e a Speechki, estão produzindo milhares de audiolivros com narração sintética.


Judy Chang, diretora de produtos do Google Play Livros, mencionou que sua divisão está focando títulos que, de outra forma, não seriam adaptados para audiolivros, abrangendo inclusive aqueles que são autopublicados ou lançados por editoras acadêmicas.


Alguns temem que, inevitavelmente, os narradores de audiolivros, assim como os profissionais em diversas áreas do setor, corram o risco de ser substituídos por máquinas. “Uma das preocupações é a perda de oportunidades de trabalho para seres humanos, já que a evolução tecnológica não vai parar”, observou Michele Cobb, diretora executiva da Audio Publishers Association.


c. 2023 The New York Times Company


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