O filme mais belo do Amazon Prime Video que talvez você ainda não tenha assistido

Mesmo as escolhas mais íntimas têm um componente sociológico — para não mencionar a biologia propriamente —, e, assim, como uma ciranda, define-se a vida de alguém, para o bem ou para o mal. É cada vez mais verdadeira a máxima tolstoiana sobre a ventura geral das famílias e sua desdita particular, e “Querido Menino” é outro dos tantos filmes a ratificar essa impressão, tanto mais se se considera que tudo, rigorosamente tudo quanto vai ali é verdade. Numa operação filigranada de genuína carpintaria poética, Felix von Groeningen consegue fazer dos relatos de um pai e um filho, nessa ordem, acerca de uma questão traiçoeira, intrincada, plena de desdobramentos que tomam a vida de muito mais gente sem pedir licença, o marco zero de discussões transformadoras a respeito do abuso de drogas, achadas em qualquer esquina sob o amplo guarda-chuva dos psicotrópicos. Fazendo questão de nunca abdicar do equilíbrio, o roteiro de Groeningen e Luke Davies vai e vem entre os momentos de agonia e as lembranças, as duas circunstâncias devidamente compostas na rotina dos dois personagens centrais, deixando margem para elucubrações as mais sombrias, que passam sempre por um triz da dura confirmação. A morte é, sim, poderosa; entretanto, o recado que o filme dardeja com nitidez constrangedora é que a vida também o pode ser — para quem encontra beleza na luta.

Compilação de passagens dos livros “Beautiful Boy: A Father’s Journey Through His Son’s” (“querido menino: a jornada de um pai através da batalha de seu filho”, em tradução adaptada) de David Sheff, e “Tweak: Growing Up on Methamphetamines” (“puxão: crescendo com metanfetaminas”, literalmente), de Nicolas, e o mote de “Querido Menino” não tem nada de mais, e até resvala nos lugares-comuns dialeticamente sedutores que essas histórias apresentam por natureza. O pulo do gato com que o diretor projeta-se para o coração de quem assiste, num movimento impetuoso, é a desmistificação do vício em substâncias químicas, e é aí que Timothée Chalamet entra para não mais sair. Muito mais que um menino bonito, como deixa claro sua filmografia de mais de duas dezenas de trabalhos na tela grande, o franco-americano sempre se apresentou de maneira impecável, em papéis que ressaltavam sua aura aristocrática, ainda que o lado mais, digamos, povão de seus personagens sobressaiam quando há essa necessidade. É justo esse o caso do anti-herói de Chalamet, indicado ao Oscar de Melhor Ator por “Me Chame Pelo Seu Nome” (2017), de Luca Guadagnino. Ainda se descobrindo, aos dezoito anos Nic tem sua primeira experiência com aditivos químicos da pesada, sob o arcaicíssimo pretexto da abertura dos canais de percepção mais obscuros da alma humana — mas se são tão obscuros, abri-los para quê?, redargue meu ingênuo coração. Com toda a parcimônia, Groeningen inclui as subtramas que não desculpam a opção de Nic, mas trazem ao palco novas discussões, cabendo a Steve Carell o contraponto de ternura e desespero que arrastam a narrativa para o escrutínio de gente grande. Colaborador eventual do “New York Times” e das revistas “Rolling Stones” e “Playboy”, o jornalista David Sheff não assume bovinamente ter de carregar o fardo da drogadição do filho por ter botado um ponto final no casamento com Vicki há quase uma década já, e tentar ser feliz com Karen — quando não está assoberbado das encomendas que precisa aceitar a fim de dar conta das internações de Nic, uma mais dispendiosa que a outra, para não mencionar, naturalmente, seus deslocamentos pela madrugada, suas buscas em inferninhos e seus apelos inócuos aos traficantes de condado de Marin, Califórnia, do outro lado da ponte Golden Gate, na badalada e maldita San Francisco onde Nic também se enfurna. Malgrado curto, um dos trechos mais reveladores do longa, na virada do segundo para o terceiro ato, é precisamente a decisão fria de Sheff em exercitar sua porção repórter e engolir alguns cristais à base de uma mistura de opioides; como sua viagem é a mais monstruosa possível, infere, acertadamente, que o efeito em Nic é o oposto. Isto é, o DNA também o absolve.

Uma das poucas escorregadelas de “Querido Menino” é tratar suas atrizes como pouco mais que figurantes de luxo e, mesmo assim, Amy Ryan, uma das melhores atrizes de sua geração, e Maura Tierney, roubam a cena, cada qual num lado da trincheira, mas as duas empenhando-se em igual medida pela recuperação de Nic, hoje um jovem senhor de quarenta anos, limpo há mais de duas décadas. Como espera quem já conviveu com alguém com transtornos semelhantes, a condução do diretor para o epílogo, mesmo longe de surpreendente, é digna de nota, e a trilha sonora, com “Heart of Gold” de Neil Young, “Territorial Pissings” do Nirvana e um cover suave de Perry Como (1912-2001) de “Sunrise, Sunset”, e, claro, a canção-tema, de John Lennon (1940-1980), arrancam-nos lágrimas. Veio-me à memória Pedro, o meu menino bonito, que não teve a mesma sorte de Nic Sheff.


Filme: Querido Menino
Direção: Felix van Groeningen
Ano: 2018
Gênero: Drama
Nota: 10


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