Multiverso: de onde vem a nova obsessão de Hollywood por mundos paralelos?

Em Hollywood, os filmes sobre universos paralelos estão em todo lugar ao mesmo tempo. Em cartaz nos cinemas hoje, “Homem-Aranha: Através do Aranhaverso” e “The Flash” ressaltam a tendência que não é só coisa de filmes de herói. Afinal, a comédia “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” também surfa na onda e levou o Oscar de melhor filme.

A ideia de multiverso que cineastas criaram para invadir os cinemas até tem origem na física quântica. Mas ela ignora quase que por completo a ciência.

O que é o multiverso

O conceito de “mundo alternativo” está presente nas mitologias grega e nórdica, e há quem diga que o céu e o inferno cristãos configurem universos paralelos. Na filosofia, Platão, ainda no século 4 a.C, já teorizava sobre habitarmos um mundo imperfeito, sombra de outro mundo.

Na ciência, o nome “multiverso” é usado para mais de um conceito. Para organizar a conversa, o físico sueco-americano Max Tegmark, de 56 anos, dividiu os termos em quatro níveis. O mais popular deles é inspirado na “interpretação dos muitos mundos” feita na década de 1950 por outro físico americano, Hugh Everett (1930-1982).

É preciso dar um passo atrás para entender a base sobre a qual Everett construiu sua interpretação: a mecânica quântica. Ela estuda sistemas de dimensões próximas ou abaixo da escala atômica, como prótons e elétrons, nos quais as leis da física clássica (como a gravidade, por exemplo) não se aplicam.

Para analisar fenômenos que não podem ser diretamente observados, ela recorre a interpretações. Uma delas sugere que, antes de ser medida, uma partícula existe em um estado de superposição, ou seja, está em todos os estados ao mesmo tempo.

Somente após uma medição é que as propriedades são definidas, dando, por exemplo, um lugar fixo para essa partícula. Para Everett, porém, todas as possíveis localizações da partícula são verdadeiras, cada uma num universo paralelo distinto.

Imagine, por exemplo, você jogando uma moeda para cima. Na “interpretação dos muitos mundos”, em vez de dar cara ou coroa, o movimento cria dois universos diferentes: um em que caiu cara e outro em que caiu coroa. Assim, cada universo experimenta um resultado diferente do lançamento da moeda.

É uma explicação teórica e não há maneira de confirmá-la ou desmenti-la. No entanto, ela mexe com o imaginário humano, como vemos no cinema.

homem - Reprodução/Sony - Reprodução/Sony

Cena de ‘Homem-aranha: através do Aranhaverso’, em que múltiplas realidades convivem lado a lado

Imagem: Reprodução/Sony

Febre nos quadrinhos

Há uma razão para os dois filmes sobre multiverso em cartaz serem de super-heróis: antes de chegar às telonas, essas histórias já estavam bem presentes nos quadrinhos.

Criador do site “Fala, Animal!”, especializado em cultura geek, Leonardo Vicente di Sessa explica que o conceito virou lugar comum nas HQs em 1961, quando uma história chamada “Flash de Dois Mundos” foi publicada pela DC Comics.

Lançado originalmente em 1940, o super-herói velocista era o estudante Jay Garrick. Na década seguinte, porém, Flash e outros personagens sumiram dos quadrinhos. Em 1956, a DC relançou o herói, mas com outra identidade: o cientista policial Barry Allen. Tinham poderes e uniformes similares, mas trajetórias distintas.

Logo na primeira edição [do novo Flash], ele estava lendo um gibi do Flash anterior. Então, dava a entender que ele era um Flash de outro mundo. E aí, nessa edição de 1961, acontece a primeira vez que ele [Barry Allen] vai para a Terra paralela, atravessa o multiverso para encontrar o outro Flash. Leonardo Vicente di Sessa

A prática virou praxe na DC Comics, que, para crescer, comprava editoras menores e incorporava seus personagens. A cada aquisição, uma Terra paralela era criada. “Chegou a um ponto em que tinha dezenas de delas. Todo ano tinha, na revista da Liga da Justiça, um encontro em que os heróis iam para outra Terra”, diz ele.

A editora tentou unificar a bagunça do universo narrativo na saga “Crise nas Infinitas Terras”, de 1985. A história confrontava várias versões de seus heróis e vilões e, ao final, reestruturava o amplo multiverso da DC em uma única Terra.

Imprecisão científica

Apesar de inspiradas na teoria de Everett, essas histórias passam ao largo dela.

Everett diz algo bem específico: quando uma medição quântica é feita, um conjunto de mundos é produzido, cada um com um diferente resultado das medições possíveis. Nenhum desses filmes faz isso. Além disso, Everett diz que não é possível viajar de um mundo para outro, o que com certeza não bate com esses filmes”. Sean Carroll, cosmólogo norte-americano e professor do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech)

Em resposta a Tilt por email, Carroll explica ainda que, na “interpretação dos muitos mundos”, as diferentes versões de uma pessoa nos múltiplos universos não são a tal pessoa. Elas descendem do mesmo indivíduo no passado, mas se tornam seres diferentes a partir do momento em que ocorre a ramificação.

Ele exemplifica com uma famosa cena de “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”, na qual duas personagens aparecem em um universo paralelo em que são pedras.

Não há sequer uma história plausível em que você e as pedras compartilhem um passado comum. Pode haver pedras conscientes no multiverso, mas não é possível que uma delas seja você.” Sean Carroll

Ficção científica com apelo sentimental

Não é papel da ficção científica ensinar ciência, diz é o escritor Carlos Orsi, editor-chefe da revista científica “Questão de Ciência”.

É perfeitamente aceitável o autor pegar um conceito e fazer dele uma tremenda barafunda. Cientistas não vão gostar, mas ele cumpre sua missão se produzir uma obra de arte de boa qualidade e que agrade ao público”. Carlos Orsi

A ficção científica, diz ele, apenas populariza os nomes de alguns conceitos e ideias gerais relacionadas a eles —que podem ou não estar corretas.

Ele atribui a atual demanda de Hollywood por filmes de multiverso a uma questão mercadológica: series e filmes podem ser reiniciadas com a ideia de um novo mundo.

“Você pode simplesmente saltar para um universo paralelo onde o passado é diferente da linha narrativa em que você está trabalhando”, explica. Há ainda o apelo sentimental, como o explorado por “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”.

Todo mundo pensa: ‘Como poderia ser? E se eu não tivesse namorado aquela pessoa? E se eu não tivesse aceitado aquele emprego?’. O multiverso mexe com a tendência do ser humano de ficar especulando sobre o que poderia ter sido.” Carlos Orsi


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