Para aqueles que acompanham a 26ª conferência do clima, em Glasgow, na Escócia, a insistente referência por parte de ativistas ao termo “justiça climática” tem provocado questionamentos.
Afinal, qual relação poderia haver entre justiça —termo que remete à política, ao direito e à economia— e fenômenos da natureza?
A história da filosofia tem nos ensinado que a separação entre ser humano e natureza resulta de uma construção histórica e, portanto, política.
Sua elaboração mais recente tem raízes na modernidade, quando começa a ser gestado o capitalismo, cuja sociabilidade tem como base a troca mercantil, a predominância da exploração do trabalho assalariado e a mercantilização de praticamente todos os aspectos da existência.
Assim, as formas de viver e de pensar não compatíveis com essa sociabilidade são sufocadas, subalternizadas ou mesmo eliminadas.
Como afirmam Adorno e Horkheimer em “Dialética do Esclarecimento”, “o que os homens querem aprender da natureza é como empregá-la para dominar completamente a ela e aos homens. Nada mais importa. Sem a menor consideração consigo mesmo, o esclarecimento eliminou com seu cautério o ultimo resto de sua própria autoconsciência. Só o pensamento que se faz violência a si mesmo é suficientemente duro para destruir os mitos”.
Ailton Krenak, ao se referir aos povos indígenas, afirma que “a modernização jogou essa gente do campo e da floresta para viver em favelas e em periferias, para virar mão de obra em centros urbanos. Essas pessoas foram arrancadas de seus coletivos, de seus lugares de origem, e jogadas nesse liquidificador chamado humanidade”.
Falar de justiça climática, dentre outras coisas, é compreender como a ação destrutiva da humanidade sobre a natureza é uma ação política e que, por isso, provoca efeitos igualmente políticos, tais como o aprofundamento das diversas formas de desigualdade.
A preservação do meio ambiente é a luta pela vida digna das pessoas que habitam o planeta, do mesmo modo que a luta contra a desigualdade torna inafastável a reivindicação pela preservação do meio ambiente.
Os países mais pobres são os mais atingidos pelas consequências das mudanças climáticas provocadas por ações humanas, como desmatamento e emissão de gases poluentes impactam condições de moradia, de alimentação e, em casos de migração, até a locomoção territorial.
E como afirmam Olumide Abimbola, Joshua Kwesi Aikins, Tselane Mkhesi-Wilkinson e Erin Roberts no artigo “Racism and Climate (In) Justice”: “Os países do Norte-Global não estão perseguindo ativamente a meta de 1,5ºC nem estão cumprindo seus compromissos financeiros com os países em desenvolvimento para apoiar a adaptação, bem como os esforços para lidar com as perdas e danos dos impactos das mudanças climáticas e para garantir o acesso a energia de qualidade e acessível para todos”.
Outro fator importante é a relação entre os impactos da degradação ambiental e os fatores de raça e de gênero, tanto em países do centro como da periferia do capitalismo, em que pessoas negras e mulheres são os mais pobres.
Como lembra o professor André Carvalho, da Fundação Getulio Vargas, cidades como Nova Orleans e qualquer bairro pobre e periférico de São Paulo têm em comum, além de populações de maioria negra, a suscetibilidade a chuvas concentradas ou à escassez hídrica.
É possível ver a rotina de desabamento de casas, alagamentos e falta de água nos bairros. E no campo, essa situação afeta a agricultura de subsistência ou os pequenos produtores rurais em razão das secas e da menor previsibilidade climática. Comunidades tradicionais quilombolas ou indígenas também são afetadas por conta de queimadas e escassez de alimentos e de água.
Dados esses fatores, não é de se estranhar a dificuldade de um acordo sobre as medidas a serem adotadas no enfrentamento das mudanças climáticas.
Ações necessárias para mitigar os efeitos das mudanças climáticas não se reduzem ao plano moral; dependem de transformações no nível da economia política. O dilema é que estamos diante da duríssima realidade de que a destruição do meio ambiente está em conexão com a reprodução das formas sociais do capitalismo, cuja racionalidade não leva em conta a possível eliminação da vida na terra.
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