Frederick Douglass (1818-1895) decerto foi o primeiro a saudar Fredrick Allen Hampton Sr. (1948-1969) no Paraíso quando, aos 21 anos, Hampton foi executado em casa por agentes do FBI, o serviço de inteligência doméstico americano. O Messias Negro a que o título do filme de Shaka King alude empenhou boa parte da vida na militância pelos direitos civis dos afro-americanos, até hoje cidadãos de segunda categoria em muitos casos, e ainda que o roteiro de King, Will Berson e Kenneth Lucas, não o mencione, o espírito de Douglass invade cada uma das 29 cenas do longa. Como Judas é o primeiro dos dois personagens a ser mencionado, e não o candidato a salvador particular da gente preta da América dos anos 1960, o diretor elabora aplicadamente a dicotomia fundamental da história, conseguindo desviar de maniqueísmos reducionistas e deixando que ambos os lados da narrativa tenham voz.
“Judas e o Messias Negro” só engrena mesmo depois que se esclarece quem é o homem a aparecer diante das câmeras de uma emissora de televisão nos primeiros minutos do filme. William O’Neal (1949-1990) concede sua única entrevista em cadeia nacional, e só então pode-se intuir para onde King pensa levar a trama. Quando “Eyes On the Prize 2” estreou na PBS, em 15 de janeiro de 1990, o Dia de Martin Luther King (1929-1968), assassinado exatos 41 anos antes, o mundo soube, afinal, qual foi a participação de O’Neal junto ao BPP, o Partido dos Panteras Negras, na sigla em inglês. Na série de documentários idealizada por Henry Hampton (1940-1998), a figura que personificou um dos maiores empecilhos para a consolidação da garantia das liberdades individuais dos negros surge dizendo-se uma vítima dos brancos, que o teriam seduzido com promessas falsas e o alarmismo delirante sobre a iminência de conflitos internacionais se, porventura, “gente de cor”, como se dizia à época, conquistasse poder, tese, essa, sim, eivada ou de má-fé ou da alucinação de teorias conspiratórias, desde sempre uma praga a rodar mundo. Essa primeira sequência, marcada por performances quase antológicas de Lakeith Stanfield — que, sem dúvida, merecia um filme para chamar de só seu —, é a que de fato inaugura o debate em torno de imanência do preconceito racial e do racismo como política de Estado na América, e se o modo pelo qual King opta por abrir os trabalhos parece falto de sentido, o diretor repara o possível engano deixando que o protagonista revele, afinal, sua natureza heroica. E ele também o faz com galhardia.
O espectador toma parte da causa defendida no filme também inspirado pela delicadeza com que Daniel Kaluuya se apossa do personagem central, um homem comum, com sonhos aparentemente inalcançáveis — e talvez, no fundo, como se dá com as almas privilegiadas que chegam a este plano por um feliz acaso, soubesse que não os veria concretos —, mas que faz brotar no público essa vontade de lutar com ele. King confere a Hampton sua dimensão humana ao mostrá-lo liderando horizontalmente, de igual para igual, as assembleias do diretório do BPP de Illinois, cuja presidência termina por assumir; é precisamente numa delas que ele conhece Deborah Johnson, hoje Akua Njeri, e os dois vivem seu amor atribulado, mas que resiste à morte: 25 dias depois do assassinato de Hampton, nasceu Fredrick Allen Hampton Jr., em 29 de dezembro de 1969. Torturada pelo remorso, William O’Neal comete suicídio horas depois que “Eyes On the Prize 2” vai ao ar.
Filme: Judas e o Messias Negro
Direção: Shaka King
Ano: 2021
Gêneros: Drama/Crime
Nota: 8/10