Coube a Adam McKay e seu rematado (e delicioso) cinismo explicarem o que levou milhões de americanos de classe média baixa a comprar imóveis cujas prestações sabiam não poder honrar, uma tragédia anunciada que, evidentemente, deixaria para apresentar-se no pior momento. Em se tratando de capitalismo, hecatombes inacreditavelmente previsíveis ou nem tanto resultam em desastre para muitos, mas também em dinheiro fácil para alguns espertos — como sempre, aliás. Depreende-se de “A Grande Aposta” uma ligeira condescendência com os lobos e abutres de Wall Street, retratados como uma súcia de malandros sem o devido preparo, somente ávidos por se dar bem e, o principal, atentos ao que o mercado clamava e exigia deles. A exceção é Jared Vennett, o janota de ternos bem cortados vivido por Ryan Gosling. Viciado em dinheiro — ele chega ao ponto de cheirar cédulas, um recorte preciso de sua personalidade —, Vennett tem de elaborar um meio de saciar seus apetites patológicos, e as pequenas ganâncias alheias lhe parecem uma excelente opção.
Por óbvio, filme nenhum é capaz de reproduzir com toda a precisão histórica o desespero que se abate sobre cidadãos sem apanágios especiais após a debacle de suas finanças, seja em que cenário for — quiçá um ou outro documentário, em que, não raro, defendem-se algumas visões de mundo claramente eivadas dessa ou daquela abordagem ideológica. A crise que vascolejou o cenário econômico mundial em 2008 foi escrutinada com rigor científico invulgar por “Trabalho Interno” (2010), vencedor do Oscar de Melhor Documentário em 2011. Dirigido por Charles Ferguson, o filme se alonga sobre as consequências práticas da crise daquele ano, valendo-se de coletas de dados, análises acadêmicas e entrevistas com personalidades, jornalistas e políticos, todos com muito o que dizer sobre o episódio. Ao longo de cinco segmentos, Ferguson se esmera em apontar a promiscuidade que teria resultado na mais grave crise financeira do século 21, e, claro, o que isso implica para quem tem (e, sobretudo, para quem não tem) dinheiro.
Baseado em “A Jogada do Século” (2011), livro em que o jornalista Michael Lewis expõe seus palpites quanto ao que teria fomentado o ambiente venenoso de extrema liberalidade econômica que degringolou numa das mais violentas guinadas da economia do mundo contemporâneo, o filme de McKay assinala quase nominalmente a responsabilidade de traders, os investidores profissionais que ganham dinheiro com operações de curto prazo — notadamente ações e contratos futuros —, a despeito do mercado estar em alta ou em baixa, e administradores de fundos de hedge, aplicações que visam a proteger o valor de um ativo — ações e moedas, em especial — contra o sobe e desce da atividade especulativa: todos eles souberam como poucos aproveitar a derrocada do mercado imobiliário, o que, por seu turno, provocaria o desmantelamento dos títulos de hipotecas subprime, ou seja, as que tinham todo o perfil de resvalar na inadimplência. McKay e seus corroteiristas, Charles Randolph e o próprio Michael Lewis adaptam a história de modo a fazer o público ter a certeza de que, à medida que os bancos se tornaram o setor mais lucrativo da América, essas instituições foram elaborando mecanismos cuja pedra angular era contribuir para que os ricos ficassem mais ricos e o zé-ninguém se encalacrasse cada vez mais. Conseguiram, como se nota, e foram além: inspiraram bancos do mundo inteiro a fazer o mesmo, com grande sucesso. Só no país mais rico do mundo, os endividados somam 40,8% da população adulta, e muitos desses débitos remontam aos reveses financeiros de há década e meia.
Sem academicismos de nenhuma ordem, “A Grande Aposta” é divertido, sem que se deixe de suscitar na audiência a necessidade de se pensar no assunto e a comoção por quem ainda não conseguiu recobrar seu patrimônio. Sobrepondo três histórias, McKay conduz a narrativa dando a cada uma seu próprio pano de fundo, como se observa no caso de Michael Burry, o misantropo que troca uma brilhante carreira como médico devido à aversão de ter de lidar com todo tipo de gente por um posto de chefia num dos maiores conglomerados de hedge da Costa Oeste, graças a seu raro talento para análise e cálculos mais complexos. Christian Bale, mais uma vez, deita e rola no papel e faz vir à superfície essa aura atormentada de Burry, encurralado entre fazer a coisa certa e ao mesmo tempo não mergulhar a empresa para a qual trabalha no caminho sem volta da perda da credibilidade e do que se convencionou denominar higidez, panorama que se descortina impulsionado por um número fabuloso de hipotecas por vencer. A fim de evitar a bancarrota, desenvolve uma modalidade de apostas contra o mercado de compra e venda de imóveis, tido pelos bancos por imunes a qualquer ataque. Tudo o que ele precisa é levar os bancos a desenvolver algo como uma apólice de seguro de títulos, e caso esteja certo e o mercado leve mesmo a breca, o dinheiro vai jorrar sem que precise mover uma palha mais. O problema é que enquanto os banqueiros não abraçam sua ideia, ele e seu fundo terão de compensar o rombo, cobrindo investimentos e oferecendo recompensas.
A escolha pela metalinguagem, na intenção de conferir a “A Grande Aposta” fluidez na compreensão de tema tão árido, revela-se um acerto, e a participação da atriz Margot Robbie e da cantora Selena Gomez como si mesmas, expondo seu ponto de vista sobre a crise e destrinchando nomenclaturas da terminologia do economês, dão ainda mais graça à trama. Steve Carell é a contraposição de racionalidade em meio a um exército de lunáticos que, ou permitem-se tomar pela fantasia de que suas delinquências jamais virão à superfície ou tomam parte no esquema cônscios de que sua tentativa de se aposentar mais cedo pode redundar em cana. Mark Baum é o camicase que se volta contra seus iguais a fim de salvar parte de sua biografia, ainda que também saia bastante chamuscado. Nessa mesma frente, mas com léguas de vantagem, uma vez que pudera se tornar multimilionário e filantropo eventual, Ben Rickert, personagem de Brad Pitt, arvora-se em guru de Jamie Shipley e Charlie Geller, de Finn Wittrock e John Magaro, respectivamente. Os dois neófitos passam a atuar no campo minado que Rickert conhece bem e do qual saiu a tempo de preservar sua saúde psiquiátrica. Hoje, prega para convertidos, admoestando magnatas a refrear seus ímpetos por mais um ou dois zeros à direita, e ajudando jovens sonhadores a ganhar dinheiro rápido, o que efetivamente acontece. Sua vingança é vê-los como ficam depois da valsa dançada, apalermados, sem saber como continuar na partida. Vazios.
É justo esse o sentimento que fica nos corações e, em muitos casos, nos semblantes de muita gente ao cabo dos 130 minutos de projeção. O envolvimento direto ou oblíquo de quase todas as instituições financeiras americanas em expedientes criminosos, em que a maioria dos tubarões escapa impune e a arraia miúda é quem vai para a panela — e frise-se que estamos falando dos Estados Unidos! — é uma fonte inesgotável do veneno que todos nós, em qualquer parte do globo, somos obrigados a engolir em maior ou menor medida, mas o que revolta mesmo é saber que mais cedo ou mais tarde sempre pode estourar outra bomba no colo do pagador de impostos, sem o qual bancos e governos, que os financiam em alguma proporção, não resistiriam. Chutando o balde do motejo, “A Grande Aposta” defende esse raciocínio com unhas e dentes. Por isso, é impossível não admirar a corajosa doidice de Adam McKay.
Filme: A Grande Aposta
Direção: Adam McKay
Ano: 2015
Gênero: Comédia
Nota: 9/10