Na década de 1950, quando as bonecas representavam bebês, a Barbie surgiu como uma nova possibilidade de brincadeira para as crianças: imaginar cenários, roupas e situações de uma mulher adulta. Mas nos últimos anos, a boneca mais famosa do mundo tem sido acusada de sujeitar garotas a um padrão de beleza inalcançável. Provavelmente isso se refletiu nas vendas do brinquedo, que caíram cerca de 11% em 2022.
No novo filme da diretora Greta Gerwig, “Barbie” (2023), a boneca já superou todas essas discussões e vive num mundo utópico, a Barbielândia, como mostrado nos trailers. Nesse lugar ideal, as mulheres dominam as profissões, ganham prêmios importantes e desconhecem a existência da rivalidade feminina. E os homens? Bom, o Ken é apenas o Ken. A profissão dele é “praia”, praticar esportes na areia e esperar pelo olhar de aprovação da Barbie.
A protagonista, interpretada por Margot Robbie, é chamada de “Barbie estereotipada”. É o exemplar original e mais conhecido da boneca: loira, magérrima e de olhos azuis. Ela tem consciência de que é um padrão e sabe que ninguém espera dela mais que beleza e carisma. Mas algumas coisas começam a mudar no corpo e nos pensamentos da Barbie e, para continuar perfeita, ela precisa ir ao “mundo real”. E o Ken, vivido por Ryan Gosling, decide acompanhá-la.
A diretora do filme, Greta Gerwig, assumiu o desafio de humanizar uma boneca. Eu me incluo no grupo de garotas que passou boa parte da infância se imaginando como a Barbie. Os filmes animados, que passavam na TV aberta nas manhãs de sábado, contribuíram para isso. Mas no live action de Gerwig, o contrário acontece: vemos a boneca se imaginando como uma mulher.
Essa jornada da Barbie se dá como uma grande sátira, sustentada, principalmente, no contraste do mundo real com a Barbielândia. E ninguém escapa dos deboches com o machismo, nem mesmo a Mattel, empresa detentora da marca Barbie. Esse foi, aliás, o primeiro live action do estúdio Mattel Films.
Se você também tem visto imagens da Barbie e cor-de-rosa por todos os lados, é porque a Mattel investiu muito na estratégia de pré-lançamento de “Barbie”. Se as vendas estavam caindo, o marketing mundial ao redor do filme valorizou as ações da empresa em 16,05%. Assim, faz sentido que a Mattel aceite as críticas que o filme faz ao mundo corporativo, usando a própria marca como exemplo.
A direção de arte (Sarah Greenwood) e os figurinos (Jacqueline Durran) são encantadores, mas também destacam a artificialidade da Barbielândia. Tudo é fabuloso, como uma história de brinquedos deve ser. As quase duas horas do filme passam voando e a gente se pega rindo de certas ironias que, na verdade, são tristes, mas se tornam engraçadas quando pintadas de rosa.
Barbie tem um ponto em comum com os outros filmes de Gerwig. Em “Lady Bird: A Hora de Voar” (2017), Lady Bird sonha em deixar a pequena cidade em que cresceu para estudar. Em “Adoráveis Mulheres” (2019), Jo March deseja tentar a carreira de escritora, enquanto suas irmãs aspiram a bons casamentos. Essas duas protagonistas, assim como a Barbie, estão em busca de algo além do que é oferecido a elas.
Mas se a Barbie estereotipada tem beleza, amigas leais e uma casa dos sonhos num mundo perfeito, o que mais ela poderia querer? É nesse ponto que Greta Gerwig consegue abordar, com muita sutileza, as ramificações da insatisfação humana e o nosso dualismo frente às mudanças: ao mesmo tempo em que precisamos de novidade, temos medo de que as coisas mudem demais.
Há quem diga que o filme é feminista, enquanto outros dizem que é “anti-homens”. A primeira afirmação é verdadeira e Greta Gerwig não faz questão de refutá-la. Mas a segunda se contradiz, porque, enquanto Barbie tenta descobrir o que realmente deseja, Ken também vive sua jornada para se tornar mais que “apenas Ken”. O machismo do mundo real não funciona, mas a aparente perfeição da Barbielândia, comandada pelas mulheres, se mostra frágil em certos momentos.
Ryan Gosling, por sinal, toma os holofotes para si em várias cenas. Quase passa do ponto, já que estamos falando de um filme centrado na Barbie. Se você já assistiu “La La Land” (2017), já viu o ator cantando e dançando. E em “Barbie”, ele mostra novamente esses talentos, assumindo a maior parte dos números musicais do filme. Sim, existem alguns, já deixo avisado aos que não gostam.
Quem também brilha é America Ferrera, que interpreta Gloria, uma secretária executiva da Mattel. Ao descobrir que a boneca está no mundo real, ela resolve ajudá-la a resolver seus problemas e a voltar para a Barbielândia. Gloria está entediada com o trabalho e não consegue lidar com a filha adolescente. Um passeio à terra de brinquedo, então, parece uma ótima opção para quem nunca se diverte.
Margot Robbie, indicada ao Oscar por duas vezes (2018 e 2020), foi a escolha certeira para Barbie, embora não tenha sido a primeira. O projeto já havia passado por Anne Hathaway e Amy Schumer. Mas, após assistir ao longa, é muito difícil desassociar a imagem de Robbie da boneca. Ela entrega superficialidade quando necessário, mas a emoção se sobressai nas partes de autodescoberta da Barbie. Esses momentos trazem equilíbrio à comédia, tornando o filme mais reflexivo, ainda que leve.
A humanização da boneca é a tentativa da Mattel de reconciliá-la com o mundo real. Também é uma aposta gigante em Margot Robbie, que também produziu o filme; e Greta Gerwig, que dirigiu e escreveu a história em parceria com o marido, o cineasta Noah Baumbach.
Apesar das muitas referências à cultura pop, que são mais direcionadas aos millenials, assistir Barbie é uma experiência interessante para qualquer idade. Mesmo falando de assuntos sérios, é um filme de família, que teria poucas cenas cortadas para passar na programação vespertina da TV. Mas isso não é um problema, eu mesma conheci grandes filmes na Sessão da Tarde.
Filme: Barbie
Direção: Greta Gerwig
Ano: 2023
Gêneros: Comédia/Drama
Nota: 7,5/10