'É possível ser cientista e mãe': grupo brasileiro que debate maternidade e carreira acadêmica ganha prêmio internacional

Com cinco anos de existência, a iniciativa conseguiu incluir informações sobre a licença parental no currículo de pesquisadores, publicou pesquisas inéditas e criou um programa de suporte financeiro às mulheres que fazem pós-graduação durante a pandemia.

Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) há dez anos, a bióloga Fernanda Staniscuaski sentiu na pele o desafio de ser cientista e mãe no Brasil.

Ao ter o primeiro filho e tirar a licença-maternidade em 2013, a carreira dela sofreu vários prejuízos que poderiam ter sido evitados. “O curioso é que esse impacto não é imediato. Em 2014, eu ainda ganhei editais para seguir com minhas pesquisas. Porém, de 2015 em diante, por não ter publicado artigos científicos nesse período, não tive mais meus projetos aprovados”, relata.

“Tive uma pausa na minha carreira para ser mãe e parecia que eu não servia mais para o sistema”, lamenta.

Diante das dificuldades, Staniscuaski resolveu agir: seu primeiro passo foi fazer uma postagem nas redes sociais relatando o caso. “Várias pessoas responderam, dizendo que estavam passando pela mesma situação”, observa a bióloga.

Nascia ali, em 2016, o embrião do Parent In Science (Paternidade/Maternidade na Ciência, em tradução livre), uma iniciativa que discute a maternidade (e a paternidade) no ambiente científico brasileiro e tenta criar políticas de apoio e suporte social às famílias em universidades e institutos de pesquisas.

O projeto, que já alcançou importantes conquistas e foi exportado para outros países da América Latina, acaba de ganhar o Prêmio Mulheres Inspiradoras na Ciência, concedido pela revista Nature, uma das publicações acadêmicas mais prestigiadas do mundo. Essa é a primeira vez que um grupo brasileiro recebe a honraria.

Uma pausa pouco compreendida

Staniscuaski explica que uma das métricas mais usadas para determinar a produtividade de um cientista é a quantidade de artigos que ele escreve e publica.

Esse é um dos principais elementos avaliados pelas instituições, como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e as agências de fomento à pesquisa dos Estados (caso de Fapesp em São Paulo e Faperj no Rio de Janeiro, por exemplo), na hora de conceder bolsas para as pesquisas.

Agora, imagina o que acontece quando a cientista vira mãe. Logo após o parto, ela sai de licença maternidade por cerca de seis meses. E, mesmo quando retorna ao trabalho, o ritmo não será o mesmo, pelo menos durante os primeiros anos de vida do bebê.

Sem a publicação de artigos recentes, essas mulheres não conseguem comprovar a produtividade e acabam sendo eliminadas dos editais que custeiam o trabalho científico.

E isso gera um círculo vicioso: sem dinheiro, não é possível continuar com os estudos. Sem os estudos, não há novos artigos. E sem os artigos, a medida da produtividade continua a cair ladeira abaixo.

“A gente fala tanto de diversidade na ciência, mas as próprias instituições não costumam cultivar isso. Elas pensam que a carreira acontece de forma linear, sem pausas ou transformações”, diz Staniscuaski.

“Uma breve interrupção no trabalho das cientistas já faz parecer que elas não pertencem mais àquele ambiente”, complementa.

A bióloga lembra que o Parent In Science nasceu em 2016 com um grupo de sete pessoas (seis mães e um pai). “Todos éramos pais e mães há pouco tempo e tínhamos essa inquietação: como será nossa carreira e o que podemos fazer para mudar as coisas?”

O retrato da realidade

Fernanda Reichert, professora da Escola de Administração da UFRGS, conta que ouviu falar do Parent In Science durante uma palestra na universidade.

“Eu tive minha filha alguns dias depois de tomar posse como professora. Naquele momento, vivenciava tudo aquilo que estava sendo discutido ali”, relata a administradora, que passou a integrar e contribuir com o projeto ainda em meados de 2016.

A pesquisadora entende que boa parte do sucesso do Parent In Science se deve à seriedade das ações do grupo, que começou a realizar levantamentos entre a comunidade acadêmica e chegou até a publicar artigos científicos chamando a atenção para o problema.

“Desde o início, a nossa abordagem foi centrada nos dados. Assim, podemos conversar com as instituições baseados em algo concreto, e não apenas num discurso”, aponta Reichert.

Um dos achados mais significativos do grupo foi o de que a mulher, após virar mãe, costuma demorar quatro anos para começar a recuperar o mesmo nível de produtividade de antes.

“Foi exatamente o que aconteceu comigo. O retorno às atividades profissionais é sempre meio confuso, e a gente fica com aquele sentimento de culpa. Parece que estamos nos dedicando demais ao trabalho e esquecendo da família, ou vice-versa”, confessa Reichert.

Maternidade no Lattes

Uma das ações do Parent In Science que mais gerou repercussão foi o “Maternidade no Lattes”, uma campanha para que os períodos de licença após ter um filho fossem registrados nas bases de dados oficiais.

Mantido pelo CNPq, o Currículo Lattes é uma espécie de LinkedIn dos pesquisadores brasileiros, onde são informadas todas as atividades que eles fazem, como a participação em conferências, a publicação de artigos e toda a formação acadêmica (mestrado, doutorado, entre outros).

Após pressão pelas redes sociais e diversas reuniões com representantes da plataforma, o grupo finalmente conseguiu que a informação sobre maternidade entrasse no currículo.

Desde abril de 2021, as cientistas brasileiras conseguem inserir o período em que ficaram de licença após o nascimento dos filhos.

Iniciativa usou as redes sociais para pressionar as instituições a incluir a maternidade no Currículo Lattes

Imagem: PARENT IN SCIENCE

Staniscuaski entende que a mudança traz repercussões práticas para a carreira das mães cientistas.

“Agora, no momento da avaliação do currículo para conceder bolsas, as instituições podem checar os períodos de ausência e entender porque não houve a publicação de artigos ou uma menor produtividade”, destaca.

Na visão da bióloga, as conquistas não param por aí. “A alteração passa a considerar que a maternidade tem um efeito na carreira e as mulheres recebem uma maior sensação de acolhimento e pertencimento”, conclui.

Pandemia agravou o cenário

Se a situação das mães cientistas já não era das melhores, a chegada da covid-19 aprofundou ainda mais as desigualdades e as dificuldades.

Esse cenário foi retratado em outro artigo produzido pelo Parent In Science. Por meio de um formulário eletrônico, o grupo levantou dados de 3,3 mil pesquisadores brasileiros de diversas áreas do conhecimento e de várias instituições de ensino.

Os resultados mostram que os cientistas do sexo masculino foram os que tiveram menos prejuízo na produtividade durante a crise provocada pelo coronavírus. Do outro lado, mães e pesquisadoras negras se mostraram as mais afetadas neste período.

“Esses impactos são provavelmente uma consequência da bem conhecida divisão injusta das tarefas domésticas entre homens e mulheres, fato que foi exacerbada ao longo da pandemia”, descreve o artigo.

Com as universidades e os laboratórios praticamente fechados por longos meses, muitos cientistas precisaram adaptar a rotina e trabalhar de casa (quando possível). Essa nova realidade impactou a produtividade de muitos deles, especialmente das mulheres negras e das mães, como apontou o trabalho brasileiro.

E, mais uma vez, isso representa uma ameaça na disputa por futuras bolsas de pesquisa.

“Esses dados são fundamentais para a gente pensar numa política de apoio nas instituições”, acredita Staniscuaski.

Outra iniciativa do Parent In Science após a chegada da covid-19 foi a criação do Programa Amanhã, que incentiva a conclusão da pós-graduação após a maternidade.

A ideia foi montar uma vaquinha para dar suporte financeiro e complementar a renda dessas mulheres com filhos que estão matriculadas em programas de mestrado e doutorado, mas não possuem uma bolsa.

A arrecadação de fundos, feita por meio da internet, conta com 274 apoiadores e conseguiu juntar 54 mil reais até o momento.

Premiação internacional

Staniscuaski e Reichert não escondem a surpresa que tiveram com o anúncio de que o Parent In Science havia ganhado o Prêmio Nature para Mulheres Inspiradoras na Ciência, concedido de forma inédita para um grupo brasileiro por uma das maiores publicações científicas do mundo.

“Foi algo extremamente relevante, pois nós somos uma iniciativa jovem, com apenas cinco anos de história”, diz a bióloga.

“Tudo passa tão rápido que às vezes a gente nem consegue assimilar direito o que fizemos nesse tempo. O prêmio coloca isso em perspectiva e reforça que estamos mudando as coisas”, interpreta.

Além do reconhecimento, o prêmio também dará 40 mil dólares (225 mil reais) ao Parent In Science. “Tudo o que fizemos até agora dependia das vaquinhas e dos apoiadores. Com esse montante, podemos pensar em ações ainda mais relevantes”, completa.

Após todas as repercussões em território brasileiro, o Parent In Science começa a ganhar a América Latina: o trabalho já é replicado na Colômbia e o mesmo deve acontecer em breve na Argentina, no Equador e no México.

Outra fronteira do projeto é envolver cada vez mais os pais cientistas e estimular os debates sobre as outras configurações familiares e sobre a licença parental, que permita o contato com os filhos por um tempo prolongado.

Para Reichert, iniciativas como o Parent In Science são bem-sucedidas porque mostram que as pessoas não estão isoladas e podem resolver problemas comuns quando trabalham em conjunto.

“É possível ser cientista e mãe. Não estamos sozinhas e podemos, juntas, reduzir as dificuldades que enfrentamos.”


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