O Facebook adverte: os Oculus Quest 2, de realidade virtual, não devem ser usados por quem tem menos de 13 anos. Faz sentido: há experiências aterradoras, desnorteantes e sabe-se lá quais conteúdos as crianças podem acessar por meio desse equipamento cada vez mais disseminado.
Mas esta semana, nós contrariamos voluntariamente a recomendação para realizar uma experiência controlada e cautelosa: oferecer às nossas netas/filhas a possibilidade de pintar e desenhar em dupla no espaço em 3D da realidade virtual, com o Multibrush.
Trata-se de um aplicativo desenvolvido em apenas dez horas, a partir do código liberado pela Google, ao desistir de levar adiante o Tilt Brush, produto que oferecia os mesmos recursos, mas não a possibilidade de desenhar ou brincar em grupo.
A mais nova, aos sete anos, gastou poucos minutos para entender o mecanismo, que exige o manuseio dos controles em menus virtuais vinculados aos pulsos dos jogadores.
É possível escolher as cores numa paleta quase infinita —as cores básicas se espalham por um círculo— e também utilizar pincel, borracha, “fitas adesivas”, nuvens, estrelas, bolas em torno do nosso corpo.
A sensação de desenhar no espaço é gratificante.
A pequena passou a girar como um pião e gritar de alegria.
A mais velha, de nove anos de idade, demorou um pouco mais para se soltar. Foi mais difícil ajustar a alça dos Oculus em sua cabeça — mesma dificuldade que o avô Paulo costuma enfrentar. Não é usual andar pelo cômodo usando um aparelho de plástico branco que pesa meio quilo diante do rosto.
Superado o desconforto, ela também adorou a experiência.
Mais difícil ainda foi garantir que elas desenhassem em conjunto —a brincadeira passou a ser apagar o que a mana tinha acabado de fazer. E mais complicado ainda foi informar que estava na hora de deixar o pai e o avô verem o resultado da aventura e substituí-las na empreitada.
Faz tempo que o mundo dos computadores e da internet namoram as artes visuais.
Um dos pioneiros foi um professor de Filosofia da Universidade de Manchester, Desmond Paul Henry (1921-2004), que construiu três máquinas de desenho a partir de computadores analógicos usados originalmente para calcular o lançamento de bombas durante a Segunda Guerra Mundial. Seus trabalhos chegaram a ser expostos na Reid Gallery em Londres em 1962.
Nos anos 60 do século passado, diversos engenheiros e cientistas tentaram usar os raros computadores disponíveis nos laboratórios das universidades em parceria com artistas. O termo computer art foi cunhado em 1963.
Nos anos 80, a Apple lançou o MacPaint, um editor de imagens para o Mac OS clássico que popularizou o uso dos recursos gráficos digitais para o desenho livre. Foi sucedido pelo Paintbrush, mas ambos seguiam restritos à tela dos computadores.
Em 2016, a Google lançou o Tilt Brush, um projeto artístico em forma de game que era compatível com as principais plataformas de realidade virtual disponíveis na época, como a primeira versão do Oculus do Facebook, o Playstation VR e a o HTC Vive.
Tilt Brush permitia a seus usuários criarem obras de arte num ambiente 3D interativo. Ganhou alguns prêmios em festivais, mas foi abandonado pela Google, que liberou seu código para que outros desenvolvedores seguissem trabalhando com ele —e aí nasceu o Multibrush.
Experiências à parte, o advento do multiverso coloca em debate as maneiras de assegurar que esse território respeite o espaço das crianças e tome cuidado com elas.
Mídias mais convencionais, como a TV, cansaram de desrespeitar esses limites, pela sensualização antecipada, comercialização abusiva, exposição precoce e outros abusos.
Em 2008, a TV Cultura baniu a propaganda infantil de sua programação, antecipando uma atitude que se generalizou a partir da Resolução 163/2014 do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) que estabeleceu as bases do que se considera ‘comunicação mercadológica abusiva’ e passou a limitar o alcance da propaganda infantil nas principais mídias da época.
Mas a tecnologia anda a passos largos, enquanto a regulação e a política se arrastam, sobretudo nesse governo.
Sem nem chegar aos problemas da realidade virtual (onde a propaganda *ainda* não é uma realidade premente e o modelo de negócios ainda está por ser definido) podemos observar nas centenas de canais de vídeo no YouTube, com seus youtubers mirins em uma relação complexa de trabalho e exposição pública, muitos deles fazendo o que se chama de ‘unboxing’ onde o cerne do vídeo é simplesmente abrir e se deleitar com o mais novo brinquedo ou colecionável do momento.
Também nos milhares de jogos gratuitos de celular, onde as propagandas —escolhidas por um algoritmo— saltam aos olhos a cada cinco minutos de jogo. Como no filme “A Origem” (“Inception”), muitas vezes temos joguinhos gratuitos e viciantes que trazem propagandas de outros games gratuitos e viciantes em um loop infinito que mercantiliza a atenção de adultos e crianças.
Um cenário perturbador de relação entre consumo e infância e que deixa evidente que o mercado, sozinho, não vai deixar de explorar as possibilidades oferecidas pelo novo mundo apenas porque é do bem.
Uma das saídas para essa questão seria uma maior presença e contribuições de redes de comunicação públicas, que poderiam criar seus próprios espaços no metaverso, ambientes focados em educação e cultura e pautados pelo interesse público.
David Kleeman é o presidente do conselho consultivo do festival infantil internacional de TV Prix Jeunesse, do conselho da Children’s Media Association (EUA) e do conselho consultivo do Joan Ganz Cooney Center. Ele atuou como membro sênior do Fred Rogers Centre e vice-presidente do conselho da National Association for Media Literacy Education.
Em artigo para o site do The Chldren’s Media, Kleeman defende que as TVs públicas como PBS e BBC mergulhem já no mundo virtual:
“Se os jovens vão se reunir lá, é fundamental que haja mundos não comerciais dentro dos metaversos, dedicados a ideias, informações e comunidades que de outra forma seriam mal servidas. Embora a base da mídia de serviço público tenha sido tradicionalmente serviços gratuitos para todos, universalmente disponíveis, quando as emissoras públicas não reivindicam espaço em novas plataformas desde o início (muitas vezes antes que o acesso seja onipresente), todos os “imóveis” principais já serão detidos por interesses comerciais.”
Apesar dos tons sombrios e distópicos que aparecem nessa coluna, nós continuamos investigando e animados com o futuro.
A realidade virtual vai desempenhar um papel definidor na rotina das próximas gerações, serão espaços de ensino e aprendizagem, mundos inteiros criados para fornecer aos estudantes experiências imersivas em todos os campos do conhecimento —de uma viagem às pirâmides de Gizé. passando pelos órgãos e sistemas do corpo humano até engenhocas lógicas que explicitem os princípios e funcionamento de física e química.
Cabe a nós, adultos dessa geração, nos certificar de que a construção dessa nova tecnologia seja pautada por esses valores e múltiplas possibilidades e que não se limitem a um novo espaço de consumo e mercantilização.