Alegoria sobre o encanto e a loucura que há em se fazer um filme, “Era uma Vez em… Hollywood” supera qualquer prognóstico ao mostrar um Quentin Tarantino sempre delirante, mas maduro, capaz de suscitar análises essenciais ao passo que defende experimentações técnicas e artísticas, uma boa razão para continuar nesse ofício. Em seu nono filme, certamente o mais dotado de personalidade, o diretor dá asas à metalinguagem já no título, uma alusão a “Era uma Vez no Oeste” (1968), obra máxima do cineasta italiano Sergio Leone (1929-1989). A paródia do americano é a sua versão, afetiva, laudatória e estritamente pessoal, de um tempo que nunca pôde viver para além de sua imaginação privilegiada — e do muito que absorveu em filmes e leituras do gênero. Nem se precisa dizer que quem recorre a “Era uma Vez em… Hollywood” buscando o ritmo e as paranoias de “Pulp Fiction: Tempo de Violência” (1994) e “Bastardos Inglórios” (2009) vai quebrar a cara. Em 2019, Tarantino estava mesmo empenhado em reconstituir uma era dada por morta, capturando o espectro de fantasia que seu roteiro materializa à perfeição.
Durante um fim de semana de fevereiro de 1969, uma estrela de um programa de faroeste enfrenta problemas para conseguir novos trabalhos, vítima direta da pletora de transformações na indústria cinematográfica americana, cada vez mais instável. O dublê que o representa nas sequências de lutas encarniçadas, perseguições a cavalo e quedas de alturas inexequíveis também começa a sentir o peso dos anos e está quase fora das listas de contato dos diretores mais importantes — e a péssima reputação, que o aponta como o assassino cruel da mulher, não o ajuda. Juntos, os dois embarcam numa jornada em que são descritas as histórias nunca contadas dos bastidores do cinema, inclusive as que não aconteceram, à medida que cruzam com lendas vivas do cinema, cada qual com um novo elemento a acrescentar à colcha de retalhos que a trama vai se tornando. Executivos finórios e seus aconselhamentos cretinos; astros meio fora de moda, amargando um ostracismo cada vez mais inevitável; novas musas tentando um lugar ao sol, sujeitas às humilhações e ao assédio de produtores lúbricos; e veteranos abandonados à própria sorte em ranchos tomados por uma comunidade hippie: tudo isso vem à tona num enredo frenético, marcado por diálogos certeiros, em que todas as palavras têm um papel específico; argumentos que viram cenas inesquecíveis; e uma fotografia que ressalta azuis e amarelos banhados pela luz dourada da Califórnia, assinada por Robert Richardson.
Rick Dalton, o astro em trajetória descendente de Leonardo DiCaprio, e Cliff Booth, o homem que parece ter sido talhado para salvar sua pele, dentro e fora dos sets, composição instigante de Brad Pitt, se esforçam para manter o nariz fora da maré de azar que os colhe — na verdade, o azar é basicamente de Dalton, mas Booth como seu duplo, claro, também acusa o golpe. “Bounty Law”, o programa que o personagem de DiCaprio costumava estrelar, é página virada na história de Hollywood, mas ele não se dá por vencido; o encontro com a raposa do showbiz encarnada por Al Pacino mostra que Dalton está disposto a fazer de tudo para se manter sob os holofotes — menos abandonar o status de bon vivant — e se lança à aventura de reinventar-se como possível novo astro do western spaghetti de Leone. Esse primeiro plano-sequência, com dois dos maiores atores do cinema, decepciona, a começar da blague meio caquética com o mote da mudança para a Itália, na boca de uma dupla de ítalo-americanos genuínos. Coincidentemente ou não, mais felizes são as passagens com o americaníssimo Pitt e a australiana Margot Robbie, cada um brilhando num tempo distinto da narrativa, mas ajustados, como tudo ao longo de mais de 160 minutos de projeção. A disputa entre Booth, um encrenqueiro que não consegue se regenerar, e ninguém menos que Bruce Lee (1940-1973), interpretado por Mike Moh, enquanto aguardam para entrar em cena, e a autodescoberta de Sharon Tate (1943-1969), incorporada por Robbie, do casamento com o Roman Polanski de Rafal Zawierucha à fugaz carreira na tela grande, interrompida por uma tragédia, são como uma viagem no tempo para quem nunca deixou de sonhar em viver aquela magia, de conhecer aquelas pessoas. Aliás, grande parte do fascínio em “Era uma Vez em… Hollywood” reside justamente em ver essas figuras conferindo à vida o esplendor que ela merece, dando ao público a ilusão de também ter seu espaço na invenção do cinema moderno como passamos a conhecê-lo. E, como todo cinéfilo bem o sabe, de ilusão também se vive.
Filme: Era uma Vez em… Hollywood
Direção: Quentin Tarantino
Ano: 2019
Gêneros: Drama/Comédia
Nota: 10/10