Autor de podcast 'Paciente 63' usou pandemia para criar mundo apocalíptico

Um futuro onde não há dados digitais armazenados em computadores. Um futuro em que as informações individuais das pessoas usam o código genético, o genoma. Esse é um dos cenários abordados na série em áudio “Paciente 63”, disponibilizada no Spotify, e estrelada no Brasil por Mel Lisboa e Seu Jorge.

O podcast de ficção científica, criado pelo escritor chileno Julio Rojas, retrata ainda temores contemporâneos, como a próxima pandemia e o medo do cancelamento. Em entrevista exclusiva a Tilt, Rojas, que se descreve como um geek ávido consumidor de ficção e revistas científicas, conta o que o inspirou a criar a série, fala sobre o isolamento social durante os meses mais graves da covid-19 e até sobre a possível colonização humana de Marte.

Para ele o formato da série em áudio é o “mais natural” para vivenciar uma história de ficção. “Nossos avós e bisavós sabiam que nada se comparava a ouvir sua novela de rádio todas as tardes. É como se uma máquina antiga, enferrujada e negligenciada de nossa mente voltasse a funcionar novamente”, destaca.

Inspiração para criar o podcast

Escritor chileno Julio Rojas, autor do podcast de ficção “Paciente 63”

Imagem: Divulgação/Domestika

A série ficcional “Paciente 63” é uma história de um viajante no tempo tratado como “louco” enquanto tenta conter uma catástrofe no futuro próximo, explica o autor. Ela estreou em julho deste ano na plataforma de streaming de áudio e já chegou a ocupar a 16ª posição em uma disputada parada de podcasts.

Na trama, a psiquiatra Elisa Amaral, personagem de Mel Lisboa, se depara com esse viajante, que anuncia que existe uma grande ameaça aos humanos. Porém, nem todos dão bola.

Essa ideia surgiu a partir de uma situação semelhante vivida por Rojas quando ele trabalhava como dentista. Uma pessoa bem agitada entrou no consultório afirmando que algo de grande impacto aconteceria na Terra. O autor precisou acalmá-la e isso o marcou.

Os meses mais restritos de distanciamento social por conta da pandemia também serviram de inspiração. Segundo Rojas, ao observar e refletir sobre as ruas vazias, ele percebeu que o futuro distópico (com ameaças aos humanos) já havia chegado.

“Tudo havia sido dito, mas ninguém ouviu a mensagem”, diz o autor, que vê no paciente que atendeu um traço de Cassandra, ícone da mitologia grega que anuncia a queda de Troia e é tratada como louca.

Novos episódios da audiossérie serão lançadas no Brasil em 2022. Confira a seguir os destaques da entrevista:

Tilt: É verdade que a inspiração para “Paciente 63” partiu de uma experiência real? Como foi isso?

Julio Rojas: Estudei odontologia, me formei e trabalhei nos primeiros anos em serviços de urgência. Em uma dessas ocasiões, chegou um paciente muito agitado, completamente nu e gritando que havia começado o fim do mundo. Tentaram acalmá-lo e me pediram para conversar com ele enquanto preparavam sua medicação e sua transferência para uma unidade especializada.

Foi assim que esse paciente me contou seu delírio. Ele dizia que o evento havia começado em Budapeste, sem dizer exatamente qual evento era esse. Pedia para ajudá-lo a falar com as autoridades, que ainda era tempo para impedir o fim, que ninguém acreditava no que ele dizia. Quando o levaram, fiquei pensando no assunto.

Eu estava debatendo com alguém com a síndrome do mito de Cassandra. Apolo a amaldiçoou, dando-lhe o dom da profecia, mas ninguém acreditava em suas previsões. Cassandra previu a queda de Troia, mas disseram que ela estava louca. E Troia caiu. Isso sempre ressoou em mim e foi ativado anos depois, durante a pandemia. E se este for o início de algo gigante e irreversível? E se este for o “Evento de Budapeste?” Lembrei disso e então escrevi o “Paciente 63”.

Tilt: Qual sua relação com a ficção científica? O que você lia na juventude e o que te inspirou a escrever a audiossérie?

JR: “Duna”, de Frank Herbert, foi meu livro de cabeceira durante grande parte da minha adolescência. “O Fim da Eternidade”, de Isaac Asimov, é uma inspiração direta de “Paciente 63”. Além, é claro, de Philip K. Dick [autor norte-americano que inspirou a criação de filmes como “Blade Runer” e “Minort Report”]. Lembro-me de um conto sobre paradoxos temporais, “All of you Zombies”, de Robert A. Heinlein.

Todos eles foram notáveis contadores de histórias futuristas do século 19. Teve também Flammarion e Julio Verne. Eu os li avidamente. E o maior narrador de ficção da história, Plínio, e sua “História Natural”. No cinema, “A Pista”, “Os 12 Macacos” e “Homem olhando o sudeste” são referências absolutas. E “Blade Runner”, é claro.

Tilt: Em que momento da pandemia você percebeu que poderia escrever uma ficção como ‘Paciente 63’?

JR: Quando as ruas estavam vazias. Essa imagem me fez pensar que o futuro distópico definitivamente havia chegado. A combinação de um vírus extremamente eficaz, a incompetência dos dirigentes políticos para enfrentá-lo, a impossibilidade de agir, o auge das fake news, a sensação de que o planeta estava nos dando uma lição. O velho mundo natural, através de um salto viral entre espécies, me levaram violentamente ao entendimento de que tudo havia sido dito, mas ninguém ouviu a mensagem.

Tilt: A série fala sobre medos profundos da sociedade contemporânea. Um deles é do cancelamento nas redes sociais. Outro pavor é o de que a internet deixe de organizar nossas experiências e histórias guardadas em nuvens. Estamos a caminho dessa distopia?

JR: Os grandes pesadelos nascem sempre de boas intenções. “Paciente 63” pega três eventos do mundo digital e os amplifica. A primeira é o julgamento coletivo infiltrado por bots [robôs] digitais, manipulado por algoritmos e que em 20 anos se transformam em “Egrégora”, uma entidade em si, uma mente onipresente, totalitária, impossível de anular, um organismo de defesa que se torna paranoico e em busca de dissidentes.

O que nasce como forma eficaz de fazer justiça quando não há volta-se contra nós: somos a Egrégora, por isso ela é indestrutível. É o pesadelo do olhar moral e totalitário que tudo vê e busca a perfeição entre os seres imperfeitos. Poderia acontecer? Claro.

O segundo medo é o da nossa codependência e a migração da nossa memória para o mundo digital. Tudo está em uma nuvem, os números de telefone, as fotos, as mensagens. O papel parece frágil, mas é uma ótima maneira de registro e permanência.

A internet é frágil. Com um apagão digital ficaríamos sem memória e incompetentes. Esquecemos coisas básicas como fazer contas ou memorizar. E isso poderia gerar um retorno ao século 19 em um mês.

O terceiro pesadelo é a fuga da realidade para um mundo virtual. A descida em um metaverso. “Wánxia” é o nome desse jogo envolvente que se fala muito rapidamente em “Paciente 63”, onde as pessoas abandonam a realidade e vão viver naquele mundo feliz, onde se casam, trabalham, passam momentos melhores que a realidade. Algo como “Meta” [ex-Facebook].

Tilt: Qual seu interesse pela ciência e novas tecnologias?

JR: Sou um geek, um grande consumidor de revistas científicas e de tecnologia, mas com o cuidado de conhecer a origem e o status da investigação. Se algo aparece em uma revista, não significa que seja verdade. A frase “investigadores da universidade de X descobriram que X” é talvez uma das que mais prejudicam as sociedades que consomem informações de modo frenético, rápido e superficial, e hoje estão em crise.

A frase “dizem os cientistas”, tirada de qualquer portal, dá a um evento uma aura de autoridade e o torna uma verdade científica inquestionável que pode ser usada por alguém com poder para justificar uma aberração científica.

Tilt: No futuro descrito na audiossérie vamos colonizar Marte em breve. Isso é plausível para você?

JR: Marte é um sonho antigo da ficção científica e, embora não ache que possa ser habitado e que seja uma viagem suicida, me lembra a mensagem que (Ernest) Shackleton teria publicado em um jornal para buscar interessados em viajar para a Antártica: “Busca-se homens para uma viagem perigosa, com frio penetrante, longos meses em completa escuridão, perigo constante e pouca chance de voltar com vida. Honra e reconhecimento em caso de sucesso.”

Mesmo assim, houve muitos interessados. Acho que com Marte acontece o mesmo. Muitos desejarão partir nessa aventura.

Tilt: Como acha que a segunda temporada de uma série iniciada na pandemia pode repercutir no público que volta aos poucos a uma certa “normalidade” graças à vacinação?

JR: A história vai se passar dez anos antes, em um mundo sem pandemia, em aparente normalidade.

Mas, vistos com os olhos de hoje, esse mundo é tudo menos “normal”. Um mudo que estava cheio de Cassandras advertindo o que viria, e que ninguém soube entender.

Tilt: Este formato da série, em áudio, pode ser descrita também como um formato do futuro?

JR: Acho que é o formato novo-velho mais natural para vivenciar uma história. Tenho visto adolescentes que ouvem uma série de áudio pela primeira vez perderem aquele aspecto um tanto apático e desconectado provocado pelas muitas horas na frente de uma tela. É uma experiência de imersão muito mais rica do que qualquer metaverso.


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