Autoajuda, astrologia e mais: como encarar as psicologias alternativas

Por volta do século IV a.C. surgiram na Grécia alguns discursos que se opunham ao pensamento eleata do qual nasce a filosofia socrático-platônica. Um de seus expoentes foi Empédocles de Agrigento.

Médico, político e teatrólogo, Empédocles propunha um sistema metafísico que se ajustasse melhor à sua prática médica do que a metafísica platônica. Esta, fundada na ideia de que tudo o que existe compõem uma unidade (o Ser) não se adapta bem quando se trata de pensar uma variação deste ser como é o caso de uma doença.

Empédocles, mas não só ele, apela então a uma metafísica da pluralidade. O ser não é uno mas cindido em princípios, terra, fogo, água e ar, que organizados em diversas proporções comporiam o “mundo”.

A doença é o desequilíbrio desses princípios num indivíduo, a cura o reencontro da proporção correta.

Assim ao médico caberia descobrir qual dos princípios encontra-se em excesso ou falta. Para tanto realizava perguntas acerca do momento em que aparece a doença tais como:

  • O que vestia?
  • O que comia?
  • Qual era o clima?
  • Que constelação estava no céu?

O objetivo era proceder a relações do tipo: usava vermelho, logo fogo em demasia. A cura passava pela reincorporação do elemento (falta o princípio ar —alimente-se apenas de pássaros, procure regiões de ventania, etc.) ou pelo afastamento do elemento em excesso (há água em demasia —nada de peixes, fique longe dos rios, etc.).

Ao refletirmos sobre um fenômeno contemporâneo como as chamadas psicologias alternativas ressoam-nos ecos da física de Empédocles.

As psicologias alternativas são práticas como: florais de Bach, pirâmides, cristais, cromoterapia, runas, tarô, búzios, astrologia, meditação transcendental, controle da mente, terapia de vidas passadas, numerologia, quiromancia etc.

Podemos agrupá-las em três grandes grupos, quer sejam de inspiração religiosa, científica ou artística. Nos três casos sua posição é incerta em relação à região de onde se alimentam culturalmente. Enquanto produção cultural recuperam e combinam teses rejeitadas pelos campos que lhes deram origem.

Nos interessa discutir aqui o que ocorre quando tais práticas fundamentam um projeto psicoterápico ou se apresentam como tal. O plano geral difere pouco da estrutura básica proposta por Empédocles, variam os princípios mas o objetivo trabalha no plano equilíbrio-desequilíbrio.

O uso de procedimentos analógicos do tipo vermelho-fogo, a recomendação de procedimentos específicos (viagens, pensamento positivo etc.) e, ponto crucial, a ideia de que o problema psíquico pode ser resolvido num âmbito extra psicológico.

É aqui que o retorno a Empédocles se mostra logicamente impossível pois é importante notar que seu sistema só é possível num quadro onde não há diferença substancial entre o homem e a natureza e numa sociedade onde a própria ideia de indivíduo, como um ser de vontade própria é impensável.

São estranhas aos gregos noções como subjetividade ou psiquismo ou ainda desejos próprios de um único homem.

No entanto Empédocles nos mostra como a partir de uma chave de interpretação muito simples pode-se “explicar” quase tudo, uma vez que não há limite para as analogias.

Essa ideia de que “tudo se relaciona com tudo”, sem critérios de mediação aparece, por exemplo, na sátira de Umberto Eco, “O Pêndulo de Foucault”.

São interpretações do tipo “cara eu ganho, coroa você perde” que aproximam as psicologias alternativas de um velho sonho metafísico, o sistema dos sistemas.

Sistemas que buscam explicar a totalidade pela totalidade, e que, ao contrário do que se pensa, são a forma mais simples de organizar o conhecimento.

Só é possível ciência, por exemplo, quando se abre mão de saber tudo e se admite a parcialidade do conhecimento.

Esse é um elemento essencial das psicologias alternativas e que explica uma parte da sua incidência contemporânea.

Constituem uma massa interpretativa que atribui a causa do sofrimento a quase tudo menos o próprio sujeito ou quando o faz supõe que a causa do sofrimento é simplesmente a falta de um saber (que evidentemente o “terapeuta” se presta a ensinar).

Nessa segunda estratégia podemos situar o fenômeno adjuvante dos livros de autoajuda. Trata-se por um lado de nomear o mal-estar (que a princípio está em falta ou excesso) e de prescrever uma ética, um modo de se comportar.

Mas se saber ou explicar o sofrimento é equivalente a curá-lo temos aí um paradoxo: para que serve o “terapeuta”? —livros ou um bom professor bastariam.

Os impasses relativos ao transporte de fundamentos de uma época onde a psicologia seria impossível para uma época de altíssima demanda de subjetivação, como a nossa, cobram aqui seus efeitos.

É como se a fragmentação de nossa cultura contemporânea causasse saudade de um tempo mítico onde reinava a integração e onde o indivíduo dispusesse de um saber suficiente sobre si.

Essa mistura de professor e médico em que se constitui o “terapeuta alternativo” tem muito pouco de psicólogo

Ao deslocar a questão para uma integração com o “cosmos” (palavra do repertório de Empédocles) a psicologia alternativa aposta na possibilidade de que os problemas psicológicos, que são essencialmente problemas nas relações entre pessoas, possam ser resolvidos fora de uma relação, ou como se ela não contasse.

Por exemplo, ao obter uma explicação de cunho “alternativo” o sujeito se conforta pois está garantido de que ele na verdade não é de fato um sujeito psicológico, paradoxal, contraditório e enigmático a si mesmo.

Isso explicaria o fenômeno migratório onde o indivíduo segue de uma psicologia alternativa para outra, sempre de acordo com a moda daquele verão e ao mesmo tempo a trajetória de ascensão rápida seguida de desaparecimento súbito dessas ondas para-psicológicas.

A cada vez que algo faz deste indivíduo alguém que se estranha consigo mesmo (ou quando o desejo inconsciente bate à sua porta) é necessário mobilizar uma nova massa de saber que o assegure de que ele nada tem que ver com isso, que se trata apenas de algo novo a saber. Daí o apelo ao “autoconhecimento”, tão recorrente neste campo.

O problema psíquico é novamente encarado como um problema de falta de conhecimento, seja sobre o futuro, sobre o passado ou sobre o presente (como se os sábios, profetas ou poetas fossem sempre felizes).

Chegamos então a uma decorrência lógica dessa equação saber = solução para problemas psíquicos, que é a seguinte: o “terapeuta” necessariamente resolveu seus próprios problemas (alguém que não sofre mais).

Daí o fascínio hipnótico e a dependência que costumam acompanhar tais práticas “alternativas”.

No entanto, é por este elemento que podemos entender a eficácia, que apesar de analgésica, não deixa de ser testemunhada pelos que recorrem a tais curas (no sentido mais remoto sugerido por Empédocles).

Os xamãs das sociedades arcaicas nunca deixaram de curar, e sempre com o mesmo argumento: o desequilíbrio do indivíduo é simétrico ao desequilíbrio da natureza.

A eficácia de suas curas não pode ser comparada com as de nossos “alternativos” pois a situação nessas sociedades é semelhante à da Grécia, isto é, ausência de um sujeito propriamente psicológico submetido a uma tensão de vontades.

A questão é que a sugestão ou autossugestão precisa de alguns condimentos retóricos para se tornar eficaz, argumentos do tipo:

  • Se for algo milenar ou antiquíssimo logo é bom;
  • Se for moderno e “cientificamente provado” melhor ainda;
  • Se você se sente bem logo é bom (onde se nota ecos da chamada cultura da drogadição);
  • Ou ainda, o que não se pode entender como funciona certamente deve funcionar;
  • Se você pensa logo acontece, se você pensa certo logo acontece certo etc.

Freud abandona o hipnotismo não porque este não curasse sintomas precisos e graves da histeria mas porque, já em 1890 se sabia que estes sintomas retornam de uma forma modificada e que o paciente requer cada vez mais sessões de hipnose, ficando cada vez mais ligado ao médico e ao poder de sua autoridade.

O trabalho, no caso do hipnotismo, cabe todo ao médico, o paciente se ausenta e se recolhe ao relaxamento (outra tônica “alternativa”), a solução parece perfeita, indolor, rápida e além de tudo a vida do sujeito se altera sem que de fato ele se modifique.

Muda-se o mundo, com a introdução de um sistema interpretativo (de novo Empédocles) e isto produz a ilusão de que o próprio sujeito se alterou.

Diz-se que a psicanálise é anticapitalista pois nela o paciente paga para trabalhar.

Talvez se possa entender porque apesar de existirem em outros países, as psicologias alternativas encontrarem grande penetração no espaço cultural brasileiro (e também na costa oeste americana). São como que o avesso da psicanálise: o sujeito paga para não trabalhar.

Compra um sistema que, como vimos, é capaz de interpretar tudo, menos o próprio sujeito, pois estruturalmente nasce sem condições para isso.

Façamos um pequeno resumo do que pudemos encontrar até aqui acerca do modo interpretativo e da ética envolvida no espaço das psicoterapias alternativas.

Quanto ao primeiro aspecto constatamos que:

  1. A interpretação segue um modelo alegórico que se orienta por um sistema de significações fechado.
  2. A interpretação obtém (ou justifica) sua eficácia a partir da autoridade e saber supostos a uma determinada instância interpretante
  3. A orientação do sistema interpretativo admite premissas de uma metafísica que tem como características:
  • a pluralidade do Ser;
  • a simetria e proporcionalidade entre o homem e a natureza;
  • a assumpção de um elemento irracional.

Quanto ao segundo aspecto, a ética, as psicoterapias alternativas se sustentam:

  1. Na ideia de que o sofrimento psicológico se resolve pela aquisição de um saber e de uma ação que lhe seja conforme;
  2. Na ideia de que a origem do sofrimento psíquico é extrapsíquica, independe portanto do próprio sujeito.

Interpretação e verdade

Pode-se indagar, depois dessa incursão sobre o discurso das psicoterapias alternativas, se, a rigor, a psicanálise não participa das mesmas premissas.

A diferença se constituiria apenas no fundo semântico adotado (a sexualidade) e na sua instalação universitária que lhe garantiria uma espécie de atestado de legitimidade, que faltaria às psicoterapias alternativas.

De fato a cientificidade da psicanálise se vê questionada com facilidade inusitada.

Se as críticas de Popper e Ayers não são absolutamente conclusivas deixam um rastro de suspeita sobre o estatuto epistemológico da psicanálise. A discussão em geral deriva para os fundamentos do próprio suposto epistemológico adotado.

Uma teoria mais “branda” acerca da ciência, como a de Kuhn (1989), nos permitiria garantir a especificidade e legitimidade da disciplina em questão.

O problema é que justamente a acepção de ciência que aí encontramos tende a pensá-la como uma espécie de tradição, um consenso sociologicamente justificado como legítimo.

Resumidamente, ciência nesta perspectiva é o produto do que num determinado momento um conjunto de especialistas ou de instituições nomeia como tal.

Ora, as psicoterapias alternativas compõem também tradições. A diferença nos remeteria simplesmente a conjunturas sociológicas que lhes reservariam o lugar de exclusão? O que este lugar preserva de atraente?

A presença cultural da alternatividade pede entendimento, ao risco de considerá-la apenas um desvio em relação à doxa oficial.

O que o discurso da psicoterapia alternativa denuncia é um desconforto com o instituído, uma rebeldia com relação ao mundo da técnica, perfeitamente antecipável nos seus efeitos e onde a própria ideia de mistério e ocultamento parece não ter lugar.

  • À parcialização das atividades humanas a alternatividade responde com um holismo unificante.
  • Ao colapso da religiosidade contemporânea se oferece uma espécie de religião de resultados: eficaz, eclética e pragmática nas resoluções dos problemas humanos.
  • Finalmente em relação ao mundo transparente, imediato e não enigmático a alternatividade responde com uma máquina interpretativa onde cada signo encontrará seu lugar até o ponto em que o sujeito não passará de um signo a mais e como tal bem “integrado”.

Se pensarmos as psicoterapias alternativas em relação ao campo de configuração da psicologia veremos que ela combina um discurso romântico com outro disciplinar.

Um exemplo desse aparente paradoxo pode ser encontrado num imperativo do tipo: “seja autêntico!”

Ora trata-se de um imperativo insensato, que coloca de um lado a valorização do inefável, dos verdadeiros valores a serem resgatados, e de outro um tom que ordena sua realização negando portanto seu aparente “naturalidade”.

Trafegando na via proposta por Figueiredo (1992) pode-se ler o projeto das psicoterapias alternativas como uma forma de reação à ordenação liberal do mundo e suas conseqüências psicológicas, a saber, a estrita separação entre o público e o privado, a asfixia a que esta fica submetida a partir de então e o colapso que representa para a constituição da subjetividade.

O tema é complexo e dele reteremos apenas a solução de continuidade obtida pelas psicoterapias alternativas entre a expressão da subjetividade privatizada e a disciplinarização desta expressão que se dá, por exemplo, a partir de técnicas.

De um lado temos portanto a valorização da personalidade autêntica, espontânea, natural e transcendente, ligada eventualmente ao ideal de uma sociedade organicamente organizada.

Por outro lado temos o desenvolvimento de técnicas para domesticar justamente a imprevisibilidade e imponderabilidade intrínsecas a estes temas.

Quer seja o futuro (práticas adivinhatórias), quer seja o passado (regressões hipnóticas, vidas passadas etc.) ou o presente (mentalizações, autossugestões etc.), a grade interpretativa é não só apresentada como eticamente correta mas que exige ainda um sistema de planejamento da vida cotidiana que inclua as ações prescritas pelo sistema (ginásticas, relaxamentos, autossensibilizações, etc.).

Um esboço de análise sociológica como este mostra justamente a filiação das psicoterapias alternativas a uma tradição constituinte da psicologia oficial ou pelo menos tolerada ao nível universitário. Portanto, ao examinarmos tal discursividade uma parte substantiva da própria psicologia estará em questão. Escolhemos para tanto as relações entre verdade e interpretação.

Num texto de 1965, “Ciência e Verdade”, Lacan postula que as relações entre a psicanálise e o tema da verdade poderiam servir para especificá-la em face de outras formas de discurso.

A primeira correção em relação ao modo tradicional de abordar o tema da verdade diz respeito ao sujeito.

O sujeito para a psicanálise se encontraria dividido entre verdade e saber.

As referências a Freud se prestam a esclarecer os termos.

  • Textualmente, Lacan alude ao artigo sobre o fetichismo (1927), onde de um lado está a verdade da castração e de outro o saber sobre o fetiche.
  • Alude também ao texto sobre a clivagem do ego, onde de um lado está a verdade do Id e de outro o saber relativo ao Eu.
  • Finalmente há uma referência ao artigo sobre a Perda na Realidade na Neurose e na Psicose (1921), onde o saber possível sobre a realidade é causado pela parte negada desta mesma realidade.

Portanto é a partir do sujeito que a questão da verdade ganha algum sentido para a psicanálise.

Vimos que a verdade na esfera das psicoterapias alternativas é, a rigor, uma verdade sobre a natureza e sua multiplicidade de princípios. No entanto, qual poderia ser o sujeito em questão neste caso? Como ele se posicionaria em face do saber e da verdade?

A civilização ocidental construiu a noção de verdade basicamente a partir de três tradições: a grega, a judaico cristã e a romana.

De acordo com Hegenberg (1985), as acepções de verdade variam de uma tradição para a outra. No caso grego, a verdade se traduz pelo termo “alethéia” (des-esquecimento). A verdade corresponde à revelação do Ser em termos da conjunção entre o discurso, a razão e o mundo. A verdade é assim o acesso ao Ser ou, como se dirá posteriormente, à sua representação adequada e perfeitamente correspondente.

Para a versão judaico-cristã, a verdade é fundamentalmente confiança ou crença na palavra ou no futuro que ela propõe. É a verdade como “emunah“, esperança na realização de uma promessa. Aqui se acentua também o discurso, mas na sua potência de antecipação do futuro. Opõem-se portanto à “alethéia” que se liga ao eterno presente.

A aliança entre a promessa e aquele que a ela se filia se vê garantida mais que por um método mas por uma ética. Trata-se de uma ética cujo fundamento é a interpretação da palavra e a extração de um modo de agir que lhe seja conforme.

Finalmente no caso romano a verdade se diz “veritas” e seu sentido é o de um dizer exato, preciso e não mentiroso. A frase “jura dizer a verdade, nada mais que a verdade e somente a verdade” expressa bem o sentido jurídico da “veritas” e sua relação com o direito romano.

Trata-se da palavra, mas que agora aponta para o passado, a palavra que faz testemunho e que expressa com retidão algo que diz respeito ao sujeito na sua acepção civil. A verdade se vê garantida pelo espírito cívico e pela tradição política que o instituiu.

Em cada uma das tradições que levantamos podemos isolar uma duplicação da verdade, um discurso que busque o verdadeiro sobre o verdadeiro.

  • Dizer (mostrar, demonstrar, provar) verdadeiramente a verdade (sobre o Ser) no caso da “alethéia“.
  • Dizer (interpretar, decifrar, desocultar) vedadeiramente a verdade (sobre a palavra de Deus) no caso da “emunah“.
  • Dizer (descrever, relatar, testemunhar) verdadeiramente a verdade (sobre os fatos) no caso da “veritas”.

É por isso que o contrário da verdade é múltiplo, ao mesmo tempo o falso, em relação à “alethéia“, o erro, em relação à “emunah” e o engano, em relação à “veritas“.

O sujeito em questão difere em função da acepção de verdade empregada.

O sujeito em relação à “alethéia” é essencialmente um conhecedor, uma entidade homogênea que possui características equivalentes às do objeto que visa conhecer: universalidade, atemporalidade, onipresença e consistência ontológica. É um sujeito epistemológico que produz para si uma ética e estética consoantes com a primazia do conhecimento.

O sujeito, no caso da “emunah” é essencialmente ético. O problema que o institui não é o do conhecimento mas o da decisão, da escolha e da ação. Sua pergunta é: como agir? Em função deste sujeito se erige, por exemplo, uma filosofia dos valores. Menos que explicações se busca aqui a interpretação do ato em face da história que o precedeu. Sua condição é a consciência coletiva ou individual das ações.

No caso do sujeito correlativo à “veritas” é o sujeito da responsabilidade jurídica, um sujeito suposto à lei. A propriedade privada, como figura fundamental do direito romano é a condição para sua existência. Trata-se de um sujeito público, capaz de moral (aqui encontramos uma forma de distinguí-la da ética) e do exercício da cidadania.

Vemos que nas três vertentes que compõe a significação da ideia de verdade há um unificante: a possibilidade de dizer o verdadeiro sobre o verdadeiro. Em outras palavras, a possibilidade de erigir um saber à condição de verdade.

O sujeito que encontramos nos três casos é um sujeito não estranho a si mesmo, um sujeito que pode se representar integralmente na palavra.

O discurso das psicoterapias alternativas é essencialmente restaurador deste sujeito e nas três dimensões em que ele pode ser pensado.

Como diz Figueiredo:

[…] Sugiro que as práticas esotéricas, místicas e espiritualistas, a astrologia, o tarô, etc., dizem respeito diretamente a questão da morada. São modos de habitar o mundo que permitem que, na vastidão de nossos horizontes, se reserve um espaço e um tempo para a reinstalação da” quietude do centro.

(p.66)

Mas haveria projeto clínico que pudesse escapar a esta demanda de restauração da harmonia como integração destas três dimensões da verdade e do sujeito?

Se voltarmos ao texto de Lacan veremos que sua posição é francamente discordante em relação às três tradições de verdade examinadas.

Primeiro porque a metalinguagem é recusada, isto é, se levamos em conta a hipótese do inconsciente não é possível elevar a verdade à segunda potência. A palavra encontra a partir disso justamente uma dissonância em relação ao Ser, à Lei e ao Fato.

A instituição de uma ruptura no sujeito foi teorizada por Freud a partir da ideia de recalcamento primário (“Urverdrangung“). Este recalque é a solução teórica para explicar a instituição do inconsciente num sujeito determinado. A partir dele não poderia mais se oferecer a transparência necessária exigida pelo sentido clássico de verdade. Portanto, não há verdade sobre a verdade porque há inconsciente.

Isto nos faz voltar ao tema da divisão do sujeito para entendê-la como um colapso entre saber e verdade, uma incomensurabilidade radical entre o sujeito falante e a apreensão de seu dito.

Ora, esse sujeito se opõe, ponto a ponto, aos sujeitos clássicos produzidos pela noção de verdade. Seus principais atributos se vêem questionados, a saber: sua disposição ao conhecer, sua certeza na palavra e sua responsabilidade sobre seus atos.

Ora, a revolta que move as psicoterapias alternativas não poderia também ser compreendida como denunciadora dessa ruptura subjetiva?

O seu discurso põe em cheque as três dimensões da verdade, uma vez que:

  • Destitui uma parte da responsabilidade do sujeito por seus atos;
  • Critica e substitui o sistema interpretativo que sustentava a confiança e;
  • Derroga o saber instituído como última versão do Ser.

A diferença, e diferença neste caso essencial, é que o discurso alternativo preserva a possibilidade de metalinguagem.

É esta metalinguagem que nos permite situar o discurso das psicoterapias alternativas como algo entre a magia e a religião.

Lacan, no texto sobre a “Ciência e Verdade”, antes citado, estabelece uma diferença quanto ao lugar que a verdade ocupa na magia, na religião, na ciência e na psicanálise para mostrar a especificidade que encontramos nesta última.

Vejamos se o quadro proposto nos auxilia a pensar o discurso das psicoterapias alternativas.

De acordo com Lacan a magia se caracteriza por tratar a verdade como causa eficiente. Causa eficiente é um conceito aristotélico que visa explicar a presença de uma determinada forma na matéria (Chauí, 1994, p. 279), isto é, essencialmente como um determinado ser se produziu, como, por exemplo, da madeira de uma árvore se produziu uma mesa.

Dizer, como Lacan o faz, que a verdade se encontra na magia como causa eficiente equivale a dizer que o saber, o saber fazer, permanece velado. Ele não é mais saber quando se eleva à condição de verdade. Daí o aspecto justificativo e não crítico do discurso. Ele se autoriza pela autoridade de quem o enuncia e não por qualquer propriedade do discurso nele mesmo.

Cena de "A Vida de Brian" (1979), do diretor Terry Jones - Reprodução - Reprodução

Cena de “A Vida de Brian” (1979)

Imagem: Reprodução

No filme: “A Vida de Brian”, do grupo inglês Monty Python, encontramos um bom exemplo do que seria esta posição em que a verdade emana do próprio ser de um sujeito.

O filme retrata a vida de um indivíduo que é confundido com o profeta, o messias. O tempo todo Brian tenta se livrar desta posição mas, muito comicamente, não consegue.

Por exemplo, num certo momento Brian afirma:

“Eu não sou o messias, vocês devem estar me confundindo com outra pessoa”.

A massa que o segue interpreta imediatamente:

“Só o verdadeiro messias diria que não é o messias, logo ele é o messias”.

É justamente por esta ligação entre o falante e a verdade, própria do discurso mágico, que é próprio à magia a ideia de que os pensamentos possam transformar a realidade. Os pensamentos são assim eficientes na constituição do mundo.

Quando Freud associa o pensamento da criança ao pensamento mágico e ao pensamento do “homem primitivo”, a par do reducionismo antropológico que isso representa, poderíamos dizer que encontramos um espaço discursivo em que a soberania da verdade se encontra com o apagamento do saber.

O efeito sugestivo de que se serve o xamã se deve ao fato de que ele se deixa absorver pela natureza, ele não é propriamente sujeito da magia que opera mas um sustentáculo corporal (daí o transe, por exemplo).

A verdade que o ultrapassa (daí a ineficácia de Brian em provar que ele não é o messias) é o que permite a ordenação proporcional entre homem e natureza.

A verdade funciona como causa eficiente, sem lugar para o saber, justamente porque o sujeito se encontra excluído, tal como vimos se realizar em termos das psicoterapias alternativas através do binômio naturalização da verdade-exclusão do sujeito em relação ao desejo.

Mas o discurso das psicoterapias alternativas não se situa integralmente do lado da magia, há ainda seu componente religioso.

De acordo com Lacan, o discurso religioso tem por característica tomar a verdade como causa final. A causa final nos responde o “para que” dos seres. Qual a sua finalidade num mundo perfeitamente organizado e concluído.

O discurso religioso é essencialmente um conjunto de finalidades, um modo de responder finalisticamente a perguntas como:

  • De onde viemos?
  • Quem somos?
  • Para onde vamos?

Lacan afirma que o discurso religioso denega esta verdade como causa. A verdade, enquanto tal, encontra-se excluída da condição humana, ela reside na vontade divina, sempre parcialmente incógnita. O que resta é uma inflação do saber que só se eleva à condição de verdade por um elemento intermediário: a fé.

Diante deste quadro podemos assinalar algumas linhas de força que constituem o discurso alternativo.

Em primeiro lugar ele é de extração mágica quando naturaliza a verdade e exclui o sujeito.

Em segundo lugar ele é de extração religiosa quando provoca uma inflação de saber a partir do uso alegórico da interpretação que se vê aplicada à natureza e a vontade que nela trata-se de decifrar.

O problema é que este discurso não pode ser mágico e religioso ao mesmo tempo. Ele não pode excluir o saber (magia) e inflacioná-lo (religião) ao mesmo tempo.

Essa contradição nos explica porque o projeto das psicoterapias alternativas é duplo em relação ao sujeito:

  • Em primeiro lugar, fazer como se ele não existisse e;
  • Em segundo lugar tentar reunificá-lo.

Se tomados em separado as duas alternativas se sustentam, ao reuni-la sua justificação se torna contraditória.

É uma situação semelhante àquela descrita pela seguinte anedota:

  • Um indivíduo é questionado quanto a um balde que houvera tomado emprestado. Responde dizendo: “Eu não o tomei emprestado. Em todo o caso, já o devolvi.”

Esta contradição é referida do ponto de vista de uma análise sociológica, por Figueiredo (1995), da seguinte forma:

A prática alternativa revela (…) a presença subterrânea de um padrão moderno, subjetivista e individualista de conduta, característico da ética da eficácia a que as práticas alternativas procuram dar respostas e soluções.

(p.72)

Isto é, as práticas alternativas se mostram participantes do mesmo solo ético que procuram erradicar ou subverter.

Numa terceira dimensão, o discurso alternativo se pretende comunicável, ensinável (como nos livros de autoajuda).

Finalmente sua possível proximidade com a psicanálise poderia ser entendida se a pensamos, em termos sociológicos, como respondente a uma crise da subjetividade.

No entanto, quando pretende incluir uma sutura no sujeito em questão, as psicoterapias alternativas simplesmente derrogam o problema que lhes deu origem e o derrogam a partir de uma estratégia muito interessante. Fazem com que o sujeito se veja participando de um ambiente discursivo onde de fato o sujeito não constituía um problema: a Grécia antiga, o mundo das civilizações orientais ou o espaço do suposto homem natural.

A divisão do sujeito é apenas correlativa de uma falta de disciplina subjetiva ou de uma falta de saber.

Há no discurso das psicoterapias alternativas sempre uma pré-figuração ou pós-figuração histórica.

De acordo com Burke, um historiador interessado nesses fenômenos, é o sentimento de afinidade com um determinado mundo o que move a interpretação alegórica.

Certos elos de analogia entre épocas seriam formas de significar o presente integralmente a partir do passado ou do futuro sem reconhecer no presente qualquer singularidade.

Por exemplo, os conquistadores espanhóis, quando chegaram à América tiveram seu trabalho facilitado, especialmente em relação aos Astecas, porque nesta civilização havia um mito que pré-figurava a vinda de algo muito parecido com homens montado sobre cavalos. Acreditando tratar-se da realização desse mito deixaram-se conquistar com facilidade.

Um exemplo de pós-figuração pode ser encontrado na relação que o discurso nazista fazia entre a constituição do Terceiro Reich e certos aspectos do Império Romano.

Portanto a pós e pré-figuração nos falam de um veio politicamente perigoso do discurso alternativo. Ele aumenta a alienação do sujeito em relação à sua própria época.

Assim o sujeito não é apenas excluído em termos espaciais (a natureza, os astros, os princípios imanentes etc.), mas também em relação à temporalidade (as vidas passadas, o “Karma”, o destino, etc.)

Bibliografia

Chauí, M. – Introdução à História da Filosofia – dos Pré-socráticos à Aristóteles, Brasiliense, 1994.

Figueiredo, L.C.M. – A Invenção do Psicológico – Quatro Séculos de Subjetivação 1500-1900, EDUC/ESCUTA, 1992.

Figueiredo, L.C.M. – Ética, Saúde e as Práticas Alternativas, in Revisitando as Psicologias – da Epistemologia à Ética das Práticas e Discursos Psicológicos, Vozes/EDUC, RJ, 1995.

Hegenberg, L. – Significado e Conhecimento, EPU/EDUSP, SP,1975.

Kuhn, T.S. – A Estrutura das Revoluções Científicas, Perspectiva, SP, 1989.

Lacan, J. – Ciência e Verdade (1958), in Escritos, Siglo XXI, Barcelona, 1988.


PUBLICIDADE
Imagem Clicável