COP26: Julgamento nos EUA mostra futuro das empresas que vendem mentiras

Por Mayra Cotta, Manoela Miklos e Joana Zylbersztajn*

A pessoa que, por anos, foi vista como uma das maiores sensações do Vale do Silício hoje corre o risco de ir para a cadeia por fraude, ensinando uma grande lição para empresas que trazem um discurso bonito de defesa do meio ambiente e da diversidade, mas são vazias por dentro. Sabe aquela história de que não é possível enganar todo mundo o tempo todo? Isso não se aplicou a Elizabeth Holmes.

Começou nos Estados Unidos o julgamento da fundadora da Theranos, a empresa que prometeu “democratizar o acesso à saúde” a partir de uma “inovação tecnológica disruptiva” da indústria dos planos médico-hospitalares em 2003. De acordo com o Departamento de Justiça, Holmes e seu sócio, Sunny Balwani, teriam conspirado para enganar investidores. Por mais de uma década.

O diferencial do produto vendido por Holmes era simples e direto: ela teria desenvolvido a tecnologia necessária para permitir que exames de sangue amplos e sofisticados pudessem ser feitos a partir da extração de apenas uma gota de sangue. Assim, qualquer pessoa poderia ir em uma farmácia, comprar um kit da Theranos, fazer um furo no seu próprio dedo, encaminhar uma gota de sangue para o laboratório da empresa e aguardar o resultado do hemograma completo.

O Vale do Silício ficou em polvorosa. Holmes falava bem, adotava uma estética semelhante à de Steve Jobs, sempre toda de preto com uma gola rolê, e vendia seu produto de maneira assertiva. Toda vez que Holmes repetia as palavras “democratização do acesso à saúde” e “inovação tecnológica disruptiva”, novos bilionários e big players do tech business se somavam ao robusto grupo de investidores que abraçaram este projeto.

A promessa de um negócio social com vultoso retorno financeiro, envernizado por um discurso de inovação e promoção de direitos deixava a todos confortavelmente animados.

Quando a crise sanitária do mortal vírus do ebola surgiu, em 2014, na África, Holmes rapidamente apareceu diante do governo estadunidense com outro discurso irresistível: Theranos teria a tecnologia para realizar testes de sangue rápidos em aeroportos que fossem capazes de identificar pessoas contaminadas.

Holmes era um nome tão reconhecido àquela altura, que não teve qualquer problema para acessar o alto escalão do Poder Executivo e apresentar seu produto.

No embate com a ciência, o discurso vazio desmoronou

Foi quando ela precisou mostrar suas credenciais junto ao Food and Drug Administration, o FDA (a Anvisa dos Estados Unidos), que seu reino no Vale do Silício começou a ruir. A ciência demonstrou que a “inovação disruptiva” era uma mentira que, ao invés de democratizar o acesso à saúde, estava apenas entregando diagnósticos falsos e resultados de exames errados.

Ou seja, o blá-blá-blá de Holmes era tão sedutor que os investidores se esqueceram de verificar um pequeno detalhe: se de fato a empresa Theranos era capaz de entregar o que vendia. Nenhum deles jamais viu uma demonstração do produto, relatórios de agências reguladoras, pesquisas científicas, certificações ou auditorias externas que corroborassem o que saía da boca de Holmes.

A empresa conseguiu funcionar por anos sem precisar demonstrar aos investidores a concretude de suas promessas. Isto nos faz pensar que era muito mais importante para estes investidores poder falar que estavam apoiando uma iniciativa de “democratização do acesso à saúde” e uma “inovação tecnológica disruptiva”, do que tomarem as medidas necessárias para garantir que de fato estavam fazendo isso.

A história de Elizabeth Holmes e sua empresa Theranos nos alerta para uma questão central neste novo momento em que a conferência das Nações Unidas para as mudanças climáticas, a COP-26, destaca termos como “responsabilidade social”, “ESG”, “compromisso com valores” e “promoção de direitos”, que viraram comuns no linguajar corporativo.

Sem sequer entrar na problemática concepção de que um teste de sangue vendido em farmácia seria um instrumento de acesso à saúde, chamamos aqui a atenção para talvez o maior desafio para quem, como nós, acredita que empresas podem – e devem, de fato – cumprir um papel importante na proteção e efetivação dos direitos humanos: o descompasso entre o discurso e a prática.

Tolerância para quem vende sustentabilidade e entrega o vazio chegou ao fim

Holmes enganou a muitos com o seu palavreado bem articulado, mas, considerando os diversos atores afetados diretamente envolvidos, talvez os mais fáceis de ludibriar sejam aqueles investidores que se preocupam mais com as aparências do que com as mudanças concretas.

Já não é tão simples quando falamos de consumidores conscientes e da sociedade em geral. Só vai aumentar a pressão sobre grandes corporações que enchem a boca para falar de diversidade, mas que seguem evitando qualquer responsabilização por eventuais práticas de racismo que aconteçam entre suas quatro paredes.

A paciência com empresas que capitalizam em cima das pautas feministas e LGBTQIA+, mas protegem internamente chefes assediadores e complacentes com ambientes de trabalho LGBTfóbicos se esgotou. A tolerância para marcas que vendem sustentabilidade, mas mantêm cadeias produtivas predatórias chegou ao fim.

Responsabilidade social, ESG (o trinômio de responsabilidade ambiental, social e governança), compromisso com valores e promoção de direitos não podem ser simplesmente buzzwords para investidor ver.

Empresas que seguirem se preocupando mais com o que falam da porta para fora do que acontece de fato da porta para dentro terão muito em breve o mesmo destino de Elizabeth Holmes. Talvez não sejam processadas por fraude a investidores, mas certamente serão expostas por consumidores e pela sociedade civil organizada com irreparável dano reputacional.

(*) Mayra Cotta é advogada especializada em gênero e professora da Eugene Lang College; Joana Zylbersztajn é advogada de direitos humanos e doutora em direito constitucional; Manoela Miklos é doutora em relações internacionais e compõe a liderança do laboratório de ativismo Nossas.


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