Depois de anos de agressões, Douglas Ricardo da Costa matou Aline Pâmela Machado, 26, a pauladas, na frente dos filhos, em agosto de 2019. Ele também tentou matar a mãe dela, que ainda tem feridas na cabeça.
Dois anos depois, Vane Machado, 55, cria os dois netos, Lara, 10, e Gabriel, 4, e luta para que eles recebam o seguro de vida que Aline fez pela empresa em que trabalhava (os nomes das crianças foram trocados nesta reportagem).
A seguradora diz que Douglas tem direito ao benefício, ao menos até o julgamento, que ainda não aconteceu. Vane não se conforma. “Não está certo ele receber esse dinheiro depois do que ele fez com a minha filha.”
Na sala de casa em Manaus, ela pede orientações sobre essas e outras questões para a defensora pública Carol Braz e a assistente social Márcia Moraes, enquanto as crianças conversam com a psicóloga Polyana Pinheiro no cômodo ao lado.
A família de Vane é acompanhada pelo Núcleo de Promoção e Defesa da Mulher da Defensoria Pública do Amazonas (Nudem), que tem um programa voltado para filhos de mulheres mortas em feminicídios (por serem mulheres).
Criado em 2018, o projeto Órfãos do Feminicídio presta assistência aos familiares da vítima nas necessidades que surgem após o crime: ações judiciais de guarda, acompanhamento do processo criminal e atendimento psicológico, entre outras demandas.
“A gente tenta concentrar tudo aqui para que aquela família não tenha que ficar indo a vários lugares diferentes”, diz Braz, coordenadora do núcleo.
A equipe faz uma busca ativa dos casos com base em reportagens e oferece o acompanhamento. “A gente tenta diminuir a distância entre o ocorrido e o nosso atendimento para evitar um trauma maior, para que a família não fique perdida nesse meio”, diz Moraes.
O projeto é finalista do prêmio Innovare, que reconhece boas práticas da Justiça no Brasil.
Pesquisas indicam que as crianças expostas à violência doméstica podem apresentar sinais como ansiedade, humor deprimido, explosões de raiva, distúrbios do sono e alimentação e até ideação suicida, afirma Pinheiro. Segundo a psicóloga, é fundamental que os órfãos de feminicídios sejam acompanhados tanto por profissionais quanto por adultos que sejam referência de afeto e cuidado para eles.
Aline Pâmela já tinha registrado vários boletins de ocorrência contra o companheiro. Um deles foi em 2017, quando ele tentou matá-la. “Fomos à delegacia, mas não aconteceu nada. O delegado disse: ‘Ela não morreu’. E só fizeram o B.O.”, afirma Vane.
Dois anos depois, o casal se reconciliou. “Ela queria consertar ele, né? Por causa dos filhos. Mas aí ela já não conseguia dormir direito, de medo. Ele cheirava a boca dela, dizia que ela fugia para a rua de madrugada.”
Na noite do crime, Vane acordou com os dois discutindo. “Ele trouxe esse pau e escondeu no quintal. Aí ele começou a bater [nela]. Eu pulei em cima para puxar ele, mas não tinha força. A Aline jogou o celular e a Lara ligou para a polícia e para a minha irmã.” A menina tinha 8 anos. O irmão, 2.
O Nudem também atua antes do desfecho trágico, atendendo mulheres que denunciam violência doméstica. “Elas geralmente vêm com um pedido emergencial, como de divórcio ou pensão alimentícia. A gente orienta, acompanha a Medida Protetiva, encaminha para psicóloga”, diz Carol Braz.
O núcleo também começou neste ano o curso Defensoras Populares, que ensina direitos da mulher para 1.500 lideranças de 43 municípios, inclusive de aldeias indígenas.
A Folha acompanhou um desses encontros, em Presidente Figueiredo, a 120 km de Manaus. Foram abordados temas como violência obstétrica e psicológica e prevenção a feminicídios.
“Antigamente tinha o ditado de que em briga de marido e mulher a gente não mete a colher. Mas a gente mete, sim. A gente não vai deixar a nossa amiga morrer sem a gente fazer nada. Vamos acabar com essa cultura de que o homem pode bater na mulher”, disse Braz às participantes.
As participantes também compartilharam suas experiências. No final, Ieda Nicácio, secretária de Políticas para Mulheres da cidade, surpreendeu ao relatar que ela própria ficou órfã de um feminicídio, já adulta.
“Um dia meu irmão chegou em casa e meu pai tinha dado seis tiros na minha mãe. Ele deitou a cabeça dela no colo dele e atirou na própria boca. Menti a vida inteira falando que meus pais morreram em um acidente de carro”, contou, com a voz trêmula. “Ele era um pai maravilhoso, trabalhador. Mas era doente de ciúme pela minha mãe.”
Ieda diz que só agora decidiu falar publicamente sobre o assunto. “Preciso encarar isso e levar a mensagem de que não é brincadeira. Um empurrão não é brincadeira, violência não é brincadeira. Ainda estou em processo de cura, mas não vou mais me calar.”
DENUNCIE
Em caso de emergência, ligue para a polícia (190) ou denuncie em uma delegacia (pode ser Delegacia da Mulher, se houver, ou em qualquer outra).
Qualquer pessoa pode denunciar casos de violência contra a mulher pelo Ligue 180 (basta teclar 180 de qualquer telefone em qualquer lugar do país). O serviço, que é gratuito e funciona 24 horas, encaminha as denúncias aos órgãos competentes e fornece informações sobre serviços especializados, como casas de apoio e delegacias.