Segunda vida já existe, e você não precisa do novo metaverso para vivenciar

Second Life é um conhecido videogame que serve de ilustração para a prometida experiência do metaverso, misturando realidade aumentada, inteligência artificial e internet. A par do que já discutimos nesta coluna sobre as dificuldades de implantação, dos riscos de manipulação e dos ganhos em termos de realidade imersiva, em vários contextos promissores, o conceito de uma segunda vida merece ser discutido em função de sua poderosa inflexão psíquica.

Ele parece se referir a um dos aspectos mais terríveis e intensos do que define a experiência de uma vida, ou seja, de que ela é uma só. Ela começa, acontece e termina, como todas as outras vidas. Este caráter inexorável e irreversível da vida nos faz meditar, desde sempre, sobre a totalidade na qual este pequeno amontoado de átomos de carbono se insere.

É o que alguns chamam de o trato dos viventes, ou seja, a maneira como negociamos, a cada vez, nossos compromissos com os que vieram antes de nós e com os que virão depois de nós, nesta viagem de tripulação intermitente.

A chamada lei da vida ainda não conhece muitas alternativas.

Recentemente virou moda entre as práticas parapsicológicas a constelação familiar. Qualquer um que conheça a obra de seu inventor, o psicólogo alemão Bert Hellinger (1925-2019), se horrorizaria com os usos que a tal coisa encontrou no Brasil.

Infusa no ambiente do coaching generalizado, turbinada por bolhas de positividade tóxica e cancelamentos endêmicos, a ideia de que em algumas horas podemos descobrir algo sensacional sobre nossa vida, olhando, vejam só, para nossos ancestrais, de repente tornou-se uma epifania coletiva.

Como se nunca, em tempo algum, jamais nem Freud, nem Jung, nem Reich, nem todas as potestades psicológicas da antiguidade jamais tivessem pensando a respeito desta curiosa ideia.

Temos dívidas com o passado, com as quais criamos fantasmas. Temos medo de repetir coisas traumáticas. Temos segredos que nem mesmo nossa família pode saber assim como a família tem segredos que nós passamos adiante sem saber. Temos silêncios que se transmitem de geração em geração.

Mas para tudo isso haverá sempre uma solução simples e rápida, que passa pela detecção de um culpado, pela redefinição das coisas neste metaverso por meio de uma simples cena de reconciliação explicativa.

Só mesmo em uma época na qual estamos tão absortos pela nossa first life, livre, independente, autônoma e fechada em si mesmo, para que alguém venha com a luminosa ideia de que nós —e junto com isso nossos problemas— viemos de outras pessoas, e que estas transmitiram algumas ideias e práticas que, vejam só, foram colhidas por outras pessoas, em um fio de continuidade que é incrível, mas parece ser uma obsessão tragicamente humana, que nunca dá certo, mas de que jamais desistimos, chamada família.

É como se, repentinamente, depois de quarenta anos focados no aqui e agora, nos resultados e nos fins, na minha vida toda ela, em toda a sua intensidade de realidade e verdade, descobrisse algo novo, mágico e incrivelmente fascinante, chamado história.

É também com uma ingenuidade de igual quilate que achamos que esta curiosa substância pode ser manipulada e vertida na forma desejada ou customizada pelo consumidor. História, faça você mesmo a sua, ou então adquira uma que se ajuste aos seus propósitos.

A segunda vida existe, mas ela é uma propriedade que já nos acompanha há muito tempo e que agora ganha uma vestimenta digital.

Ela foi, desde sempre, composta pelos caminhos que eu não tomei, pelos amores que não vivi, pelas viagens que não fiz, pelos homens e mulheres nos quais eu não me tornei. Como já disseram Simone, Fagner, Zélia Duncan e Sueli Costa:

Só uma coisa me entristece
O beijo de amor que eu não roubei
A jura secreta que eu não fiz
A briga de amor que eu não causei
Nada do que posso me alucina
Tanto quanto o que não fiz
Nada do que quero me suprime
Do que, por não saber, ‘inda não quis
Só uma palavra me devora
Aquela que o meu coração não diz
Só o que me cega, o que me faz infeliz
É o brilho do olhar que eu não sofri.”

A canção não poderia ser mais clara. Há uma palavra que nos devora, que nos engole, que nos possui e da qual seremos eternos prisioneiros: aquela que não foi dita, roubada, jurada, alucinada, suprimida ou desejada.

Às vezes, os grandes amores e as grandes batalhas de uma vida são aquelas que não aconteceram. Mas isso realmente faria de uma vida uma vida menor, no mesmo sentido em que Deleuze falava em uma literatura menor?

Nós, psicanalistas e literatos, vivemos deste hiato criado pela ficção de que tudo poderia ser outro, tudo poderia ser diferente. Tratamos de pessoas que acham que suas vidas teriam sido melhores se tivessem sido outras. Mas também estimulamos as pessoas a viver sua second life dentro desta first life.

Sim, estamos neste ramo do metaverso antes de Mark e sua turma chegarem fazendo alarde. Sim, mandamos gente para a Lua, desde Júlio Verne (1828-1905) e Georges Méliès (1861-1938).

Sim, a segunda vida pode acabar com a primeira. Você pode passar a vida pensando numa e vivendo a outra. Aliás, você pode passar a vida casado com a outra (já pensou nisso?).

Desde Plutarco inventamos esta história de que há vida mais notáveis do que outras, e que na verdade algumas vidas imitam as outras, a ponto de podermos dizer que há um estoque limitados de formas de vida que podemos escolher e enquanto elas não se esgotam temos que esperar, como alguns povos indígenas nos quais a pessoa tem que esperar um nome “vagar” para poder usá-lo, sendo que até então você vive uma vida sem nome ou com um nome secundário do tipo: filho de, neto de, sobrinho de.

Infelizmente existem pessoas, não indígenas, que vivem vidas baseadas neste tipo de subterfúgio.

Não é por outro motivo que nossas super-heroínas e nossos super-heróis têm sempre uma identidade secreta. Eles são nós em uma second life. Eles são nossos desejos realizados ao preço de que não somos exatamente como eles.

Tanto em Stalker (1979), filme de Tarkovski, quanto em Rimbaud, a tese de que o eu é um outro funciona como uma pena de Thoth para avaliar o destino de uma vida ou de duas.

Na mitologia egípcia Thoth, aliás inventor do tarot, este sistema de cartas para ler o destino, era encarregado de julgar o peso da alma contra as vísceras de uma vida, decidindo pela vida eterna ou pela dissolução da alma, com a pena que ele arrancava de seu próprio corpo, para depositar na balança do juízo final, para ser o VAR da peleja entre primeira e segunda vida.

Sim, se Deus está morto só temos uma first life. Mas o que isso significa? Que tudo é permitido, como dizia Nietzsche, ou que nada é permitido, como afirmava Lacan?

Pense nisso quando for comprar seu aparelho de imersão binocular em uma realidade paralela. Você quer realmente se mudar para o mundo maravilhoso do(a) amante? Ou vai recitar mais uma vez o poema de Robert Frost, que um dia ouvi de um analisante e jamais esqueci de passar adiante:

O Caminho não Tomado

Dois caminhos se divergem em um bosque de outono
Me desculpe, mas não poderia seguir pelos dois
Sendo um só viajante, então me detive
E olhei abaixo até onde minha visão se perdia
Estarei contando isto com um suspiro
Em algum lugar tempos e tempos mais tarde:
Dois caminhos se divergiam em um bosque, e eu e eu-
Eu tomei aquele menos trilhado,
E foi isto o que fez – o que fez toda a diferença.
Ah, eu deixei o outro caminho para outro dia!
Porém sabendo que um caminho conduzia ao outro,
Me perguntei se eu deveria mesmo voltar
Porém sabendo que um caminho conduzia ao outro
Eu iria voltar?
Estarei contando isto com um suspiro
Em algum lugar tempos e tempos mais tarde:
Dois caminhos se divergiam em um bosque, e eu e eu-
Eu tomei aquele menos trilhado,
E foi isto o que fez – o que fez toda a diferença “[1]

[1] Two roads diverged in a yellow wood,
And sorry i could not travel both
And be one traveler, long i stood
And looked down one as far as i could
I shall be telling this with a sigh
Somewhere ages and ages hence:
Two roads diverged in a wood, and i and i-
I took the one less traveled by,
And that has made, has made all the difference.
Oh, i, i kept the first for another day!
Yet knowing how way leads on to way,
I doubted if i should ever come back.
Yet knowing how way leads on to way
Shall i come back?
I shall be telling this with a sigh
Somewhere ages and ages hence:
Two roads diverged in a wood, and i, and i-
I took the one less traveled by,
And that has made,has made all the difference.


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