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Não somos senhores de ninguém nem de coisa alguma, nem de nossas próprias vidas, malgrado, por absurdo que soe, haja quem trate sua passagem pelo plano da matéria feito o cronograma de uma fábrica, sem margem alguma para deambulações de qualquer natureza. Às vezes é necessário ir para muito longe a fim de se sentir em casa, e só quando vencida uma jornada extensa, fatigante, desumana até, sabe-se, afinal, o que se procurava.

 Cheryl Strayed, a Cheryl desviada, tentou alcançar-se de muitos jeitos, mas foi atravessando o oeste dos Estados Unidos que teve a chance de colocar em ordem anos de traumas por perdas insuperáveis, pensamentos e condutas autodestrutivos, a tão natural inconformidade com tudo quanto se pode saber do existir.

Em “Wild”, Jean-Marc Vallée (1963-2021) mostra boa parte da aventura de Strayed pelos cerca de 1.800 quilômetros da Pacific Crest Trail, a trilha que cruza toda a Califórnia, da fronteira com o México até os limites com o Canadá, mais de quatro meses de temperaturas escaldantes no começo, neve no final e os contratempos que obrigam os peregrinos a se valer de frieza e do desejo de se superar a toda hora. Nick Hornby, dá fôlego à outra de suas mágicas adaptações — Hornby é o autor de “Alta Fidelidade” (1995), livro que deu origem ao filme homônimo de Stephen Frears lançado em 2000, do qual também é roteirista —, transformando passagens lancinantes de “Livre — A Jornada de uma Mulher em Busca do Recomeço”, (2012), de Strayed, sua dedicada colaboradora, numa seleção de poesia incômoda e estimulante, uma das marcas do filme.

Ainda no começo, Cheryl se senta à beira de um precipício, tira um pé da bota de cadarços vermelho-cereja e arranca a unha do dedão esquerdo. Ela enverga com a dor e lá se vai a bota ribanceira abaixo, um batismo de sangue que faz questão de referendar arremessando a outra metade do calçado. Cenas assim capturar o interesse do espectador de imediato, convencendo-o de que Reese Witherspoon é a mulher certa no lugar adequado.

Depois de trabalhos irregulares na esteira de “Johnny & June” (2005), a biografia de Johnny Cash (1932-2003) e June Carter (1929-2003) dirigida por James Mangold, pela qual ganhou o Oscar de Melhor Atriz ao dar vida à rainha consorte do country americano, Witherspoon acerta o passo numa composição agridoce, seca e untuosa a um só tempo, inclusive nos vários flashbacks em que a protagonista lembra-se de passagens que não deixam de ter contribuído para que tomasse a decisão mais radical quanto a seu futuro — ou a falta dele.

Nesses segmentos, Laura Dern na pele de Bobbi, a mãe de Cheryl, monopoliza os olhares quase tanto como fez em “História de um Casamento” (2018), de Noah Baumbach, que, como aconteceu com Witherspoon, também deu-lhe o Oscar, de Melhor Atriz Coadjuvante. Vallée opta, acertadamente, por dedicar bons minutos do enredo a documentar a relação de Cheryl e Bobbi, cuja sincera alegria de viver não resiste a um câncer de medula. Evidentemente, isso não explica tudo o que se passa com Cheryl, que aos 27 anos e divorciada, parece ter sufocado o gosto pelo sexo casual com estranhos, justamente a prática que minou seu casamento com Paul, do ótimo Thomas Sadoski. Além do vício em heroína.

A sucessão de dificuldades com o clima, a alimentação regrada e meio insossa, a falta de banho, o silêncio onipresente, ajudam Cheryl a tornar-se quem é, ainda que nos livros de presença dos viajantes, nunca se furte a deixar mensagens um tanto esquizofrênicas, misturando sua identidade à de Emily Dickinson (1830-1886), Robert Frost (1874-1963) ou John Micherer (1907-1997). Em 15 de setembro de 1995, com o fim da empreitada, ela volta a ser só Cheryl Strayed. E se redescobre dona de si.


Filme: Wild
Direção: Jean-Marc Vallée
Ano: 2014
Gêneros: Aventura/Thriller/Biografia 
Nota: 9/10


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