“Talvez isso soe como ficção científica”, diz Mark Zuckerberg. “Nos próximos cinco ou dez anos muitos de nós estaremos criando e habitando mundos tão detalhados e convincentes como esse aqui.”
As frases foram ditas em um evento surpresa no final de outubro em que o presidente do Facebook anunciou que sua companhia mudaria de nome para Meta e que sua prioridade agora seria o desenvolvimento de um metaverso.
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Segundo a apresentação, Zuckerberg planeja, para um futuro breve, óculos leves e finos de realidade virtual (e não o volumoso equipamento de hoje) como porta de entrada para mundos online onde seria possível estudar, ver filmes e shows, praticar exercícios físicos, encontrar amigos, conhecer pessoas e fazer compras.
Os debates sobre as definições e as fronteiras entre os conceitos ainda estão abertos, mas a popularização do metaverso deve representar um passo seguinte à realidade virtual (também definida como a sensação de imersão viabilizada por óculos 3D e visão 360°) e a outras tecnologias, como a realidade aumentada (que une elementos virtuais e paisagens reais. Um exemplo é o game Pokémon Go).
Plataformas de games como Fortnite e Roblox já são tipos de metaverso — e têm gerações mais novas imersas neles. A Microsoft também desenvolve o seu, o Mesh for Teams, focado no trabalho: um mundo virtual como ferramenta corporativa. O projeto de metaverso de Zuckerberg é mais amplo.
“Nós acreditamos que o metaverso será o sucessor da internet móvel”, declarou ele no evento de divulgação da Meta. As implicações no mundo, se essa previsão se concretizar, podem ter consideráveis repercussões dado que mais de 4 bilhões de pessoas no mundo se valem do celular para conexão a web e a apps.
Facebook demonstra protótipo de luva tátil com foco no metaverso
Atualmente o tempo gasto com telas já é bastante questionado. A empresa de análise App Annie diz que, nos últimos dois anos, o uso diário em aplicativos móveis subiu 45%, impulsionado pela pandemia — o líder no levantamento é o Brasil, com média de 5,4 horas por dia e 30% de aumento.
O cientista Jeremy Bailenson, diretor-fundador do laboratório que estuda realidade virtual na Universidade Stanford, nos Estados Unidos, diz em seu livro de 2018 Experience on Demand (Experiência sob Demanda, em inglês) que o tempo passado com óculos “é psicologicamente muito mais poderoso do que qualquer mídia já inventada e se prepara para transformar dramaticamente as nossas vidas”.
Com outras formas de representação, quase sempre estamos cientes da artificialidade das sensações, afirma Bailenson. Na realidade virtual, as fronteiras começam a ficar um pouco confusas: os equipamentos de hoje já proporcionam uma imersão significativa — e o avanço da tecnologia nos próximos anos promete experiências mais poderosas.
“Nosso cérebro fica confuso o suficiente para entender esses sinais como realidade? Onde quer que você entre na discussão ‘um meio pode influenciar o nosso comportamento?’, eu posso te garantir: a realidade virtual influencia. Há muitas pesquisas, realizadas por décadas em meu laboratório e em outros lugares do mundo, que demonstram esses efeitos”, analisa o cientista.
“Para algumas pessoas, a ilusão é tão poderosa que o sistema límbico [região do cérebro envolvida com emoções e memória] delas entra em um estado de atividade intensa.”
Bailenson relata um tour dado a Mark Zuckerberg em 2014 em que demonstrou experimentos de seu laboratório e uma conversa na qual “alertou sobre os atuais custos sociais do vício generalizado em sedutores mundos de fantasia, pornografia e videogames e como esses custos serão multiplicados em uma mídia poderosamente imersiva”.
Poucas semanas depois do encontro, o Facebook, hoje Meta, anunciou a compra por US$ 2 bilhões de um fabricante de óculos de realidade virtual, a Oculus VR.
Devemos ficar preocupados? Bailenson, que é um entusiasta das possibilidades da realidade virtual e a vê como instrumento para empatia, diz à BBC News Brasil que “a palavra ‘cautela’ é mais apropriada do que preocupação”.
“Nós devemos estar vigilantes, ler os termos de privacidade [de um produto como o metaverso], não usando a realidade virtual cegamente para todas as atividades e observando algumas regras de segurança.”
Uma de suas recomendações é limitar a duração de imersão com os óculos a 30 minutos. Uso excessivo causa enjoo e fadiga ocular. Associações de oftalmologia no Reino Unido e nos EUA, no entanto, ainda não encontraram evidências de danos permanentes aos olhos. Mas pedem estudos de longo prazo.
Em 2014, um psicólogo da Universidade de Hamburgo, na Alemanha, passou 24 horas em uma sala de realidade virtual em condições monitoradas e relatou que houve desorientação “sobre estar em um ambiente virtual ou no mundo real” e confusão a respeito de “certos artefatos e eventos entre os dois mundos”.
Três anos depois, uma dupla estabeleceu um recorde no Guinness ao assistir a 50 horas seguidas de conteúdo em realidade virtual. Um dos participantes, Alejandro Fragoso, relatou que se sentiu “absolutamente horrível” e “desconectado do mundo real e da passagem do tempo”.
Maratonas como esses experimentos são exceção, mas o plano descrito por Zuckerberg leva diversas esferas da vida para dentro do metaverso, o que ocuparia parte significativa das 24 horas do dia.
A Meta enviou um comunicado dizendo que “o metaverso ainda está um pouco distante e não será construído da noite para o dia”.
“A Meta vai dialogar com legisladores, especialistas, acadêmicos, sociedade civil e parceiros da indústria para ajudar a dar vida ao metaverso, que funcionará como uma combinação híbrida das experiências sociais online atuais, às vezes expandidas em três dimensões ou se projetando no mundo físico. Não é necessariamente sobre passar mais tempo online, mas tornar mais significativo o tempo que você está online”.
Também declarou que “o metaverso é a próxima evolução em uma longa jornada de tecnologias sociais. A Meta não construirá, não será a dona e nem poderá realizar sozinha o metaverso. A construção do metaverso será similar ao processo que levou à criação da internet, e não ao lançamento de um app individual”.
Douglas Rushkoff, estudioso da cultura digital e autor do livro Team Human (Time Humano, em tradução livre), afirma à BBC News Brasil que “há uma ideia de que gostaríamos de trabalhar, ter entretenimento, exercícios e atividade criativa nesses espaços virtuais ou de realidade aumentada. Isso pode ter sido bom durante a pandemia de covid, mas há muitas desvantagens que isso se torne permanente”.
“Acho que as pessoas se comunicam umas com as outras de maneiras sutis. O modo como trabalhamos e como fazemos amor é mais complicada do que essas simulações podem proporcionar”, diz.
Alvaro Machado Dias, neurocientista especializado em novas tecnologias e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), entende que “a gente já vem de uma fase de diluição entre o online e o offline”.
“Existe um ponto em que não há mais capacidade intencional de separar esses mundos. A gente vive num ambiente em que tecnologia digital é muito parte da nossa cultura”, diz.
Ele, no entanto, considera que o modelo de negócios da Meta pode representar uma barreira para sua popularização.
“Óculos são desconfortáveis e dão vertigem. Não acho que as saídas futuras mais fortes serão com o uso massificado de óculos”.
Ele vê mais chances de sucesso no conceito de realidade aumentada da Disney, que envolverá tanto os parques quanto sua plataforma de streaming, e no projeto da Microsoft de criar um metaverso corporativo.
Segundo Machado Dias, “há muito tempo o Facebook vem buscando caminhos para ter domínio sobre a plataforma em que seu software é usado”.
A decisão da Apple de limitar o rastreamento de informações do usuário por aplicativos do iPhone representou problemas para a forma como o Facebook conseguia seu faturamento — propagandas definidas por algoritmo. O iPhone é majoritário no mercado norte-americano e atrai clientes de poder aquisitivo maior.
“A solução ideal, então, seria ter um novo mundo como plataforma, independente do celular. O modelo de metaverso do Facebook responde a esse desafio de mercado.”
As dificuldades de Zuckerberg
Há um outro obstáculo: a reputação da empresa.
Douglas Rushkoff considera as críticas e o acúmulo de controvérsias em torno de Zuckerberg como um fator limitante para a popularização do seu metaverso.
“Acho que as pessoas entendem que o Facebook está desaparecendo em muitas maneiras, particularmente quando veem desvantagens e más intenções. [O nome] ‘Meta’ é uma maneira de a empresa se reposicionar em uma indústria diferente. Mas há algo de desespero nisso.”
Mas, para Rushkoff, “as pessoas podem ser estúpidas, especialmente quando alguém mostra a elas algo bonito. Ninguém confia em Zuckerberg, mas ninguém sente que tem muito a perder”.
No últimos anos, ex-funcionários do Facebook têm vindo a público com relatos de que a companhia não toma atitudes sobre problemas em suas redes sociais, como a influência prejudicial na saúde mental de adolescentes, o papel na propagação de fake news e o vazamento de dados pessoais de usuários.
Em diversas oportunidades, Zuckerberg pediu desculpas sobre os fatos apontados e disse que a companhia precisava melhorar.
Bailenson, do laboratório de realidade virtual na Universidade Stanford, quando questionado sobre a apresentação do metaverso feita por Zuckerberg e se a impressão sobre o criador do Facebook mudou desde o encontro em 2014, afirmou que “continua a conversar com líderes de corporações e governos na tentativa de guiá-los sobre as provações e tribulações da realidade virtual”.