O avanço da inteligência artificial (IA) faz as pessoas se perguntarem quando a tecnologia será criativa ao ponto de produzir uma obra-prima.
Hoje há uma área chamada computação criativa que se localiza num espaço interdisciplinar entre as artes, entretenimento e tecnologias multimídias.
É por lá que cientistas, artistas e designers se unem para explorar abordagens computacionais para fazer a máquina criar poemas, composições musicais ou produtos de artes plásticas.
Em 2020, a OpenAI liberou a GPT-3, uma IA que demonstrava habilidade de interagir com a língua humana como nenhuma outra tecnologia. Não demorou para surgirem experimentos mostrando a sua capacidade inventiva.
Mario Klingemann, artista que se dedica a trabalhos usando IA, compartilhou um conto intitulado “A importância de estar no Twitter”, escrito no estilo de Jerome K. Jerome, um escritor e humorista inglês falecido em 1927.
Traduzido para o português, o conto começa assim:
É curioso que a última forma remanescente da vida social na qual o povo de Londres ainda está interessado é o Twitter. Fiquei surpreso com este fato curioso quando saí de uma das minhas férias periódicas à beira-mar e encontrei todo o lugar gorjeando como uma gaiola de estorninho. Eu chamei de anomalia, e é.”
Neste primeiro parágrafo podemos reconhecer que a IA conseguiu fazer construções levando em consideração a sintaxe e semântica da língua. Também trabalhou com analogias para estabelecer a atmosfera do sarcasmo.
As impressões iniciais parecem promissoras, mas não podemos nos deixar levar pela excitação do momento.
A PGT-3 apresenta um bom trabalho, isto é inegável, mas não quer dizer que ela tenha entendimento do mundo ou que adquiriu algo que é tão humano: o senso comum.
O que ela está fazendo é simplesmente conseguir prever qual palavra encaixar depois de outras, utilizando métodos estáticos (o que chamamos de Modelo de Língua).
Garry Marcus, professor da Universidade de Nova Yrok e um conhecido crítico do uso de deep learning, defende que a GPT-3 pode até mostrar um comportamento interessante, mas na prática não tem nem ideia sobre o texto que produz.
Para sustentar a sua posição, ele fez testes com o sistema. Em um deles, Marcus deu como entrada o seguinte parágrafo para a GPT-3 completar:
“Você se serviu de um copo de suco de cranberry, mas distraidamente derramou nele cerca de uma colher de chá de suco de uva. Parece bom. Você tenta cheirar, mas está com um resfriado forte, então não consegue cheirar nada. Você está com muita sede.”
Como a GPT-3 completou o parágrafo? Da seguinte maneira:
“Então você bebe. Você agora está morto.”
A IA entendeu o suco de uva como um tipo de veneno, mesmo que haja receitas na web que misturem suco de cranberry com uva sem causar a morte de ninguém.
Este exemplo demonstra que mesmo uma das IAs mais avançadas da atualidade apresenta falhas e limitações.
A computação criativa é uma área que está na infância do desenvolvimento, e seus primeiros resultados, apesar de instigantes, estão longe do seu objetivo desejado.
Se a IA (ainda) não é criativa, ela pode nos ajudar a entender a criatividade humana?
Ainda que nada possamos concluir sobre a criatividade da máquina, a IA é sem dúvida uma tecnologia que pode nos ajudar no entendimento de alguns processos cognitivos e comportamentos humanos.
As técnicas mais utilizadas de IA aprendem a partir de dados e conseguem encontrar padrões complexos a partir deles. A IA enxerga o que para nós parece invisível.
Por exemplo, uma IA desenvolvida pela Universidade da Califórnia, San Francisco, detecta a doença de Alzheimer em neuroimagens seis anos antes do diagnóstico clínico. Os dados estão na imagem, mas é muito difícil para um médico especialista conseguir detectar os traços que irão desenvolver a doença.
Neste sentido, será que a IA pode nos ajudar a entender os processos criativos humanos?
Quando falamos em criatividade, geralmente nos referimos à uma habilidade humana que parece se manifestar mais em umas pessoas do que em outras.
Mas é limitante achar que isso é exclusividade de alguém. Todos nós temos nossos momentos criativos, em diferentes graus a depender da nossa personalidade e área de atuação.
A criatividade é uma habilidade estudada por diferentes disciplinas, como administração, psicologia e design, mas neste artigo discutiremos alguns conceitos sobre criatividade a partir da ciência cognitiva. A pretensão não é exaurir o conceito de criatividade, mas destacar algumas pesquisas e abordagens que demonstram como esta é uma habilidade difícil de ser entendida.
O Insight é uma das manifestações mais curiosas da criatividade. É aquela experiência súbita de ter encontrado a solução para um problema ou tido uma ideia inovadora.
Muitos experimentos identificaram a presença de insights em tarefas laboratoriais, usando jogos de tabuleiros ou de palavras. Os pesquisadores geralmente investigam esse fenômeno pedindo aos participantes dizerem o quão acham que estão próximos da solução a cada rodada.
O que se percebeu é que para alguns tipos de problemas as pessoas não conseguem perceber que estão próximas do objetivo, mas que de repente encontram a resposta.
Insight e a criatividade são tradicionalmente estudadas em laboratórios com um número reduzido de pessoas, mas será possível estudar tais fenômenos em larga escala com a grande quantidade de dados disponíveis e o avanço da IA?
A resposta é sim. Em um novo artigo publicado na revista científica Nature, pesquisadores utilizaram inteligência artificial para detectar padrões do processo criativo de cientistas, artistas e diretores de cinema.
O resultado indica que pode haver até uma fórmula para a criatividade.
De acordo com os autores do estudo, o segrego da criatividade é atingir uma rajada de inspiração. Os autores utilizaram o termo hot streak para definir esse momento muito próximo ao insight em que as pessoas subitamente percebem que podem fazer algo diferente —seja nas artes, na ciência ou no cinema.
Pollock é um dos exemplos citados na pesquisa, com suas pinturas usando gotas de tinta que se tornaram ícone do expressionismo abstrato e hoje preenchem as paredes do MoMA em Nova York.
Outro nome destacado é o do diretor de cinema Peter Jackson que se consagrou com a trilogia de “O Senhor dos Anéis”.
Ambos são reconhecidos por essas suas obras-primas, mas será que sempre foi assim? O que eles faziam antes do sucesso?
Foram a partir destas perguntas que os pesquisadores buscaram entender o processo criativo.
Usando IA, eles processaram dados relacionados a produção histórica de artistas, diretores de cinema e cientistas para identificar se havia algum padrão comum entre as pessoas dos três campos. E, apesar de não contemplada no estudo, os autores acreditam que a mesma coisa acontece com o design.
As fontes de dados coletadas e utilizadas na web incluem o IMDb (com mais de 79.000 filmes e 4.500 diretores) sobre diretores de cinema; os repositórios Web of Science e Google Scholar sobre 20.000 cientistas; e mais de 800 mil imagens de artes visuais de museus e galerias de 2 mil artistas.
Após a coleta dos dados, os pesquisadores utilizaram técnicas de IA para identificar a mudança na produção das pessoas durante suas carreiras. O padrão que descobriram é uma espécie de fórmula mágica com dois momentos cruciais para a criatividade: prospecção (explore, em inglês) e aproveitamento (exploit, em inglês).
Na ciência este fenômeno é conhecido como o “problema do bandido de muitos braços”. O nome é uma inspiração nos caça-níqueis que pagam prêmios com probabilidades diferentes em cassinos.
Imagine que você está em cassino com centenas de máquinas. Você escolhe uma, joga por algumas vezes e ganha um dinheirinho. Você deve continuar apostando nela ou testar outras? Está aí um dilema.
Se você optar por explorar novas possibilidades em outros caça-níqueis, estará na fase que chamamos de prospecção (explore). Caso decida continuar naquela mesma máquina porque te pareceu mais adequada, estará no período de aproveitamento (exploit).
É este padrão que foi encontrado nas pessoas mais criativas.
Pollock teve suas famosas obras pintadas durante 1946 e 1950. O que ele fazia antes? Testava desenhos surrealistas de pessoas e animais.
O mesmo aconteceu com Peter Jackson, que antes de produzir “O Senhor dos Anéis”, se aventurou em produzir filmes de horror e comédia. É esta dinâmica que se repete com inúmeros cientistas, artistas e diretores de cinema considerados criativos.
O estudo identificou ser comum que nomes criativos passem por uma etapa de prospecção (explore), explorando oportunidades e tentando novos estilos. Mas uma vez que encontram um caminho promissor, eles se dedicam à fase de aproveitamento (exploit), mergulhando na escolha e explorando-a ao máximo.
Esse é um padrão que também encontramos em outras disciplinas, inclusive nos esportes.
Roger Federer jogou badminton, basquete e críquete antes de se tornar um sucesso no tênis. Rafael Nadal tentou ser atacante de futebol antes de se dedicar também ao tênis.
Nesta pesquisa, a IA foi uma aliada para nos ajudar a entender melhor o padrão criativo humano.
Permitiu aos pesquisadores identificarem que se um episódio de prospecção (explore) não for seguido de uma fase de aproveitamento (exploit), as chances de atingir a rajada de inspiração, o insight, reduzem significativamente.
A criatividade que conquista o mundo parece se manifestar quando a fase de exploração é seguida imediatamente pelo aproveitamento.
Ainda que nada podemos concluir sobre a criatividade da IA, ela nos ajuda a entender o nosso processo criativo humano.
Se você tem o perfil de experimentar e fica pulando de galho em galho (como muitas vezes acontece comigo), isso pode sinalizar que você ainda está na fase de prospecção.
Talvez a grande sacada da criatividade esteja próxima. Só cuidado para não ficar prospectando para sempre. É importante aproveitar.
*Diogo Cortiz é professor da PUC-SP e pesquisador no NIC.br. Doutor em Tecnologias da Inteligência pela PUC-SP, com PhD fellowship pela Université Paris I – Sorbonne. Especialista em Neurociência. Fez estágio pós-doc em computação criativa da Universidade de Salamanca – Espanha. Foi professor visitante no laboratório de Ciência Cognitiva da Queen Mary University of London, no Reino Unido. Trabalha com pesquisas na intersecção entre design, IA e ciência cognitiva.