Enquanto eu fazia um mosaico de fotografias do céu reconstruindo a cena dos “três cruzeiros” (veja post anterior), lembrei que meu passaporte acabou de vencer. O gatilho da lembrança veio do fato de que o novo passaporte tem uma representação do Cruzeiro do Sul na capa. Então notei que a constelação do Cruzeiro, sob o ponto de vista terrestre, aparece invertida na capa do passaporte!
Compare você mesmo. Acima vemos o Cruzeiro do Sul como é observado a olho nu a partir da Terra. A imagem da esquerda é uma simulação (S) em computador e a da direita uma fotografia real (R) feita por mim. Note que a quinta estrelinha, vista a olho nu sempre como sendo a mais “fraquinha” do grupo, oficialmente catalogada como épsilon Crux e carinhosamente chamada de “intrometida”, vista da Terra (de onde é bom que se diga eu fiz a foto) fica sempre do lado direito.
Mas no desenho da capa do novo passaporte brasileiro (abaixo) aparece do lado esquerdo, num estranho efeito de espelhamento.
A imagem do Cruzeiro do Sul estampada na capa do passaporte é como a constelação seria vista de um ponto do espaço, muito distante da Terra. Por que essa concepção “extraterrestre”?
Você sabe que na bandeira nacional brasileira há a representação de uma parte da abóboda celeste, não sabe? O Cruzeiro do Sul também está representado na bandeira nacional. Veja abaixo, com todas as atuais 27 estrelas.
Reparou na “coincidência”? Sim! Na bandeira brasileira o Cruzeiro do Sul também tem a “intrometida” (estrela número 13) à esquerda.
A nossa bandeira é linda! Não tem como negar. E é um símbolo oficial do nosso querido país. Mas é bom que se diga que essa representação do céu, propositalmente, não é realística.
A ideia original da abóboda celeste representada por um círculo azul na bandeira era a de mostrar a configuração do céu da cidade do Rio de Janeiro às 8h30 do dia 15 de novembro de 1889, data da Proclamação da República. Confira o artigo terceiro, parágrafo primeiro, da Lei número 5700 de 1 de setembro de 1971 que define os símbolos nacionais, dentre os quais a nossa bandeira.
Fica claro, pela Lei, que esse “espelhamento” do Cruzeiro do Sul e das outras constelações contempladas na bandeira é intencional. Está explícito no texto que “As constelações (…) devem ser consideradas como vistas por um observador situado fora da esfera celeste”.
Vale também observar que, como o Cruzeiro do Sul é a menor das 88 constelações catalogadas pela União Astronômica Internacional, na nossa bandeira ele aparece exageradamente maior em relação às outras constelações, provavelmente por uma questão estética.
A ideia era a de representar o céu, sem ser necessariamente uma carta celeste.
Pronto. Tudo explicado! E de forma simples.
O “espelhamento” do céu foi escolha dos criadores da bandeira. Talvez eu tivesse optado por representar o céu como o vemos. Mania de professor de ser sempre certinho. Mas os criadores da bandeira pensaram diferente.
Logo, o Cruzeiro do Sul da capa do passaporte brasileiro deve ter seguido o mesmo critério, inspirado na bandeira brasileira.
Vale também destacar que a primeira bandeira nacional brasileira foi oficializada pelo Decreto número 4 de 19 de novembro de 1889. Por isso mesmo, o dia 19 de novembro é o Dia da Bandeira.
Havia inicialmente 21 estrelas. A versão mais recente data de 11 de maio de 1992 e contempla 27 estrelas (1 para representar o Distrito Federal e 26 para os estados da federação).
Onde mais aparece o Cruzeiro do Sul?
O Cruzeiro do Sul é a constelação mais importante do hemisfério sul. Logo, aparece em inúmeros lugares. Vou citar alguns.
Se você torce para o Cruzeiro Esporte Clube, time de futebol tradicional de Belo Horizonte (MG) certamente se lembra com muita clareza como é o belo escudo azul. Para quem não é cruzeirense, reproduzo-o logo abaixo.
Note que no escudo do Cruzeiro Esporte Clube o Cruzeiro do Sul é representado exatamente como o vemos daqui da Terra, com a “intrometida” para a direita.
Veja mais dois exemplos:
Diferentemente da bandeira brasileira, as bandeiras da Austrália e de Papua-Nova Guiné mostram a “intrometida” sempre à direita, exatamente como na visão terrestre. Veja aqui outras diversas bandeiras, nacionais e internacionais, que estampam a constelação do Cruzeiro do Sul.
Na bandeira do Mercosul, o Cruzeiro do Sul aparece só com quatro estrelas, todas representadas do mesmo tamanho aparente, sem nenhuma distinção de magnitude!
O Cruzeiro do Sul é mesmo uma “cruz de estrelas”?
Não, não é! As estrelas do Cruzeiro do Sul (e de qualquer uma das 88 constelações oficiais) não estão no mesmo plano. Constelação são agrupamentos aparentes de estrelas só vistos daqui do nosso referencial, a Terra.
Em outras palavras, vistas daqui do nosso planeta algumas estrelas parecem fazer parte de um agrupamento. Mas isso não passa de ilusão, pois, numa mesma constelação, estrelas podem estar muito mais próximas ou muito mais distantes da Terra. E podem nem mesmo estar gravitacionalmente ligadas.
Para se ter uma ideia de como é isso, veja a ilustração abaixo com informações do próprio Cruzeiro do Sul.
Note que a “intrometida” é a estrela mais próxima da Terra, a cerca de 59 aos luz. Beta Crux é a mais distante dentre as cinco principais estrelas. Para um observador na Terra, a olho nu, não há como saber nem mesmo estimar a distância real das estrelas. Por mera ilusão, todas parecem estar a uma mesma distância dos olhos do observador, formando uma cruz. Mas não estão.
Logo, se a “intrometida” (épsilon Crux) está representada para a direita ou para a esquerda, nem é tão importante. Tudo depende “de onde” espiamos as estrelas.