Inteligência artificial já recria e faz obras de arte, e os artistas nisso?

Em março deste ano, o Museu Mauritshuis, em Haia (Holanda), emprestou ao Rijksmuseum, em Amsterdã, uma das pinturas mais famosas do mundo: “Moça com Brinco de Pérola” (1665), de Johannes Vermeer. Para não deixar o espaço vazio, o local resolveu convidar o público a criar “sua própria garota” inspirada na obra de arte.

A organização recebeu 3.482 releituras, incluindo fotografias, esculturas, peças de crochê e até composições com vegetais. Um júri escolheu cinco para exibir no museu. Entre elas estava uma obra feita por inteligência artificial, o que gerou debates e críticas sobre qual será o papel de artistas num mundo em que IAs poderão ocupar cada vez mais o espaço de humanos.

Esse foi apenas um dos casos recentes que reacenderam a discussão. Em janeiro, as artistas Sarah Andersen, Kelly McKernan e Karla Ortiz processaram as plataformas Stability IA, Midjourney e o sistema de portfólios artísticos DeviantArt. O argumento foi que as empresas usaram artes feitas por elas para treinar inteligências artificiais sem autorização prévia.

Para elas os conteúdos produzido pelas IAs infringem os direitos dos artistas.

Afinal, como será esse futuro?

Para o artista multimídia Francisco Barretto, professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e pesquisador em inteligência artificial e criatividade computacional, não existe e não existirá obra de arte sem humanos, mesmo que ela seja gerada com ajuda de algoritmos.

“O artista é fundamental porque tem um olhar crítico sobre o social, o político, sobre a comunidade e sobre ele mesmo que a máquina não é capaz de ter”, ressalta.

Barretto também vê no atual contexto uma chance de os artistas humanos explorarem ferramentas com IA para identificar falhas nas tecnologias e refletir sobre um uso de maneira crítica.

“Tento fugir sempre dos extremos, da tecnofobia [crença de que a tecnologia vai substituir o ser humano] e da tecnofilia [achar que ela vai ser a salvação da humanidade]”, acrescenta.

Thiago Yaak, CEO da startup Yaak Ventures, que oferece um serviço de rastreio e segurança de obras de arte digital, é um entusiasta desse ramo. Para ele, o setor de “AI Art” (produções artísticas feitas com o uso de inteligência artificial) não vai virar um movimento de arte histórico como o impressionismo, por exemplo. Contudo, deve funcionar como um suporte à criação e à criatividade.

“A gente vai passar por um momento de recusa [de estranhamento aos materiais gerados por IA]. Como se fosse algo que não é arte porque veio do computador”, destaca ele, que também cria peças de artes usando IA e é especializado em sistemas de blockchain (estrutura base da moeda virtual Bitcoin).

Olhar ético sobre os códigos

Estratégias para fortalecer o compromisso ética de artistas diante da inteligência artificial, segundo os entrevistados, devem envolver reflexões sobre:

Estou usando ou não a propriedade intelectual de outras pessoas? E isso vale para artistas não tão conhecidos como grandes nome do setor. “Essas ferramentas de IA são treinadas em largas bases de dados. É possível, por exemplo, pedir que elas criem uma imagem de alguém na praia no estilo de Van Gogh. Ou seja, apesar de o artista estar morto, ainda é o estilo dele ali apresentado”, explica Barretto.

As imagens geradas por IA possuem vieses? Se sim, quais são eles? Esse compromisso serve para identificar e evitar, por exemplo, produções discriminatórias. “Ou seja, estou olhando para os aspectos éticos do meu prompt [que executa tarefas em sistemas], tendo a percepção de que não é só matemática ou algoritmo, mas que a gente tem a responsabilidade de ir balizando o que está sendo criado”, afirma Yaak.

Há alguma representação negativa vinda dela? Como materiais inspirados no discurso de ódio.

Para Thiago Yaak, cabe aos artistas também incluírem conteúdos culturais diversos nos algoritmos e comandos que forem criando, diminuindo assim as chances de que as IAs reproduzam comportamentos humanos, como racismo, misoginia, entre outros.

Barretto também reforça que observar os vieses da IA é fundamental, pois a tecnologia possui limitações: “as bases de dados não foram criadas por alienígenas. As máquinas aprendem com base no que nós representamos a elas.”

Pressão para usar IA

Na visão do professor Barretto, existe atualmente uma pressão de mercado para o uso de IA a todo custo, mas não necessariamente direcionada aos artistas.

“Eu não sinto, do ponto de vista prático, uma pressão das grandes corporações para que os artistas utilizem essas ferramentas de maneira mais direta. O que acho é que se cria uma pressão social não só para os artistas, mas para todas as profissões”, explica.

Nesse sentido, o pesquisador entende que usar ou não inteligência artificial em uma obra artística ainda está a cargo dos artistas decidirem, levando em consideração, contudo, que socialmente é esperado que as pessoas conheçam ou utilizem de maneira sistemática muitas dessas ferramentas no seu dia a dia.

Muito disso, segundo ele, pela inquietação presente em muitos artistas diante do desejo pelo novo, pela experimentação e não conformismo. Quando surge uma nova ferramenta, por exemplo, querem usar e ver como funciona, o que não significa que devam sempre ceder às pressões sociais.

Para Yaak, poderão surgir movimentos menores em que a inteligência artificial não será o foco, mas um possibilitador de novas formas de criação para muitos profissionais do meio.

“Não muito tempo atrás, eu tinha que preparar uma data set [arquivo de dados], treiná-lo, criar uma rede e gastar horas de computação para fazer acontecer. E eu chamava isso de ‘AI Art’. Hoje, com as ferramentas já pré-treinadas e com a qualidade que possuem, já estão mais acessíveis para todo mundo, e aí a IA passa a não ser a parte mais importante do negócio”, diz Yaak.

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