O que é fusão nuclear e por que ela não deve, por enquanto, ajudar na crise climática

O próximo salto da ciilização humana pode estar nas estrelas. Mais especificamente no domínio da energia estelar: a fusão nuclear.

A fusão, por seu potencial de gerar enormes quantidades de energia limpa, traz a esperança de que, no futuro, as nações não dependam mais de combustíveis fósseis para geração energética.

O problema do parágrafo anterior está em uma palavra: futuro. A humanidade não pode contar imediatamente —e, considerando o estágio tecnológico atual, mesmo no médio prazo— com essa fonte energética para lidar com a crise climática em curso na Terra.

A fusão nuclear ocorre quando dois núcleos de hidrogênio se fundem e formam um atómo de hélio. Vale uma ressalva aqui: não confunda fusão com a fissão nuclear, que é usada em usinas nucleares e consiste em, como o nome diz, chocar dois átomos para que eles se “quebrem”.

Se o ser humano consegue “quebrar”, então o caminho para fundir já deve ser conhecido, certo?

Certo. O problema é colocar em prática e controlar, na Terra, as reações que ocorrem nas estrelas.

A fusão só é possível quando as partículas estão a elevadíssimas temperaturas —a ponto de formar plasma, o quarto estado da matéria, um gás ionizado—, sob alta pressão. Isso porque os prótons (presentes nos núcleos que se quer chocar) exercem repulsão entre si. Para aproximá-los e fundi-los, só sob condições extremas, como os milhões de graus Celsius dentro de um reator de fusão.

Mas, quando a união funciona e se forma o hélio, grandes quantidades de energia são produzidas, o que, por sua vez, poderia servir à sede energética da humanidade.

Atualmente, já conseguimos produzir a fusão, mas há uma série de problemas que impedem o seu uso para produção comercial de energia.

“O maior problema é que não se gera mais energia do que se consome”, afirma Vinícius Njaim Duarte, pesquisador do Laboratório de Física de Plasma da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Ou seja, a energa usada para colocar os reatores de fusão em funcionamento é maior do que a energia gerada na reação.

Em agosto deste ano, a partir de fusão, cientistas conseguiram produzir 10 quadrilhões de watts, em um ponto do tamanho de um fio de cabelo humano, por 100 trilionésimos de segundo. Para isso, bombardearam com mais de uma centena de lasers uma placa de hidrogênio.

Essa iniciativa específica, porém, não tem finalidade energética, alerta Njaim Duarte. O objetivo do programa do Lawrence Livermore National Laboratory’s, no National Ignition Facility, nos EUA, é militar, em busca de novas armas.

Mas, de volta a aplicações pacíficas, outro problema é o pouquíssimo tempo que os pesquisadores conseguem manter a reação. Para a geração de energia em larga escala, logicamente, seria necessário que o processo fosse mais duradouro.

Em junho deste ano, o reator chinês East (Experimental Advanced Superconducting Tokamak) anunciou ter atingido um recorde: manter o fluxo de plasma por 101 segundos a 120 milhões de graus Celsius.

Além da questão de tempo, há também o problema da matéria-prima do plasma. Dois isótopos de hidrogênio são necessários, o deutério e o trítio.

O deutério é um isótopo amplamente disponível nos oceanos da Terra. Segundo o pesquisador de Princeton, o reservatório é virtualmente inesgotável. Mas o trítio praticamente não existe.

“Não há mais trítio na natureza, em lugar nenhum do Universo”, afirma Gustavo Canal, pesquisador da USP do laboratório de física de plasma. O elemento é radioativo e tem uma meia-vida (de forma geral, tempo que leva para a quantidade da substância decair pela metade) de somente 12 anos.

Para a produção trítio, é necessário o bombardear lítio com nêutrons, uma etapa a mais para a produção de energia a partir de fusão.

“Elevadíssimas”, “enormes”, “milhões”, “quadrilhões”, substâncias que não existem. As descrições já dão uma ideia do nível de complexidade do processo. E, com acidentes nucleares que marcaram as últimas décadas, as descrições grandiloquentes podem também soar como um alerta de risco.

Mas, além da promessa de energia limpa, a fusão traz consigo a garantia de segurança, dizem especialistas.

Qualquer problema no processo, ao contrário do que se poderia imaginar de um experimento com tantos superlativos, resultaria somente na interrupção da complexa reação.

TOKAMAK

A fusão hoje costuma ser desenvolvida em um maquinário conhecido como tokamak. É nele em que, no vácuo, calor e campos magnéticos conduzem a sopa de deutério e lítio evitando que as partículas se choquem com as paredes.

Quando ocorre a fusão, nêutrons se soltam e, esses sim, têm que colidir com as paredes. A energia contida nesse choque é transformada em calor, que aquece água, que por sua vez evapora e faz girar turbinas que, aí sim, geram energia elétrica —mecanismos já usados em termelétricas.

Existem outras máquinas com configurações diferentes do tokamak, mas a essência é a mesma.

O teste, talvez definitivo, da viabilidade da fusão para produção de energia está quase pronto, na França, graças a um grupo de mais de 30 países que busca o caminho. “O caminho”, em latim: Iter.

O colossal tokamak Iter, ao custo de cerca de US$ 20 bilhões, tem grandes ambições: ser o primeiro em que a fusão produz mais energia do que consome e o primeiro a funcionar por longos períodos, dois dos problemas citados anteriormente.

A trabalho internacional conjunto para tocar o projeto, que teve início em planos da Guerra Fria de colaboração entre EUA e União Soviética, acaba, no cenário atual, encontrando eco no esforço universal das nações —o qual pelo menos deveria acontecer— para conter a crise climática.

Logicamente, a estrutura de um tokamak também precisa aguentar o tranco da fusão nuclear. E aí entra uma outra questão: o desenvolvimento de materiais resistentes o suficiente.

A hostilidade do interior de um reator de fusão é comparada, por Duarte, com uma nave espacial reentrando na atmosfera. “O nariz do ônibus espacial é pequeno e só precisa aguentar o bombardeamento de partículas por alguns segundos. O Iter tem que aguentar um bombardeamento duas vezes maior por horas, por anos.”

E não para por aí. Durante a fusão, ocorrem instabilidades que geram filamentos nas bordas do plasma, os ELMs (Edge-Localized Mode). Algo comparável seriam erupções solares, afirma Canal, que estuda exatamente esse fenômeno e busca respostas para o problema com um tokamak na USP.

Se em um processo normal de fusão o bombardeamento no interior do tokamak já é extremo, ELMs podem levar a situação a níveis inimagináveis.

“Estamos trabalhando no limite dos materiais que conhecemos”, afirma Canal. “Durante um ELM, o valor do bombardeamento sobe exorbitantemente, fica uma ordem de grandeza acima do que os materiais suportam.”

O Iter já está cerca de 75% pronto, e o primeiro plasma deve correr pelo aparelho já em 2025, se as projeções se mantiverem.

Apesar de toda essa tecnologia parecer um futuro ainda distante, o pesquisador de Princeton aponta que já há bastante dinheiro privado sendo investido na fusão, o que apontaria que resultados mais sólidos podem estar mais próximos do que o imaginado. Entre os investidores da fusão estão Google, Bill Gates e Jeff Bezos.

“Os países desenvolvidos se deram conta de que o futuro é a fusão”, completa o cientista da USP, apontando os investimentos estatais na área. Canal também diz buscar, dentro do Brasil, parcerias com empresas para apoiar o projeto nacional de fusão.

“O domínio da fusão será um marco civilizatório”, resume Duarte, ainda que energia limpa, ele pondera, não será o suficiente para resolver todos os problemas do mundo.


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